O
Ministério Público também entende que com a solução adotada na sentença
recorrida “ocorre um verdadeiro estímulo ao ilícito, pois, a partir
dela, passam os empreendedores a saber que se desejarem ‘comprar’ alguma
APP, de ocupação legalmente vedada, basta invadir e devastar, pois, no
final das contas, apenas pagarão um módico valor em juízo”, como ocorreu
com o empreendedor condenado que “no final, conseguiu comprar a área
que queria, após utilizá-la irregularmente, por longos anos, contornando
assim a proibição legal de exploração econômica de APP”, alerta.
Juntamente
com a indenização, a sentença recorrida determinou que a empresa
condenada apresente e execute Projeto de Recuperação de Área Degradada
às margens do Rio Jaguaribe, no entorno do muro que cerca o prédio do
Manaíra Shopping. O projeto deve incluir reflorestamento da margem do
rio degradada pela construção ilegal de um muro do shopping, além do não
lançamento de esgotos sanitários e outros líquidos para dentro do curso
d'água.
Licenciamento ilegal - Na apelação, o
Ministério Público pede a reforma da sentença para que sejam julgados
totalmente procedentes os pedidos negados pelo juízo de primeiro grau (e
requeridos agora, novamente, ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região -
TRF5). Dentre os pedidos, está a declaração da nulidade de todas as
licenças ambientais concedidas pela Superintendência de Administração do
Meio Ambiente (Sudema) ao empreendimento comercial.
Para o MPF,
há flagrantes ilegalidades nas licenças concedidas pela Sudema ao
Manaíra Shopping, que não assumiram validade formal após a devida
tramitação e não foram homologadas pelo Conselho de Proteção Ambiental.
As licenças também não respeitaram as áreas definidas como sendo de
preservação permanente. Algumas construções sequer tiveram licença da
Sudema.
No recurso, o órgão lembra que, ainda na fase do
inquérito civil, havia requisitado à Sudema os processos do
licenciamento. Mas, segundo alegado pela Sudema, “todos os processos que
interessam a esta demanda teriam desaparecido misteriosamente”. Desse
modo, o suposto “extenso licenciamento ambiental” do Manaíra Shopping,
alegado pela empresa, não foi sequer demonstrado documentalmente nos
autos.
Sucessão de equívocos - Na sentença
recorrida, o Ministério Público aponta uma sucessão de equívocos na
análise de mérito, dentre eles, além da sanção “absolutamente
desproporcional à gravidade do ilícito ambiental (praticamente uma
‘venda judicial’ privilegiada de APP por módica quantia) ”, constata-se o
subdimensionamento dos danos decorrentes das obras de expansão do
Manaíra Shopping sobre o leito original e o leito desviado do Rio
Jaguaribe.
Medições do Ibama e levantamento fotográfico, com
dados de satélite, atestam que, na área do shopping, o rio Jaguaribe
apresenta largura superior a dez metros. A APP em cada uma das margens
do Rio Jaguaribe é de 50 metros, conforme determina o Código Florestal.
Dessa forma, todas as estruturas que o Manaíra Shopping construiu sobre o
leito original do rio estão em situação ilegal, o que abrange parte
considerável do edifício principal, inclusive a casa de show Domus Hall e
os cilindros metálicos localizados do outro lado da Avenida Flávio
Ribeiro Coutinho.
Também são ilegais as construções que o
shopping erigiu nas margens do leito desviado do Rio Jaguaribe, entre
elas o edifício-garagem, um muro, as torres de refrigeração, a camada
asfáltica e a subestação de energia elétrica, dentre outras
intervenções. No entanto, o magistrado só menciona repetidamente a
construção de um muro a menos de 15 metros do leito desviado do Rio
Jaguaribe, omitindo todas as outras construções, sem motivo aparente.
Em
razão de intervenção humana realizada na década de 1940, o Rio
Jaguaribe passou a contar com uma bifurcação na área onde se localiza o
Manaíra Shopping. A partir da bifurcação, uma parte do seu fluxo foi
desviada para o Rio Mandacaru e o Rio Jaguaribe prossegue no seu leito
original, que se prolonga até o Bairro do Bessa, tendo um trecho
canalizado e encoberto pelo referido empreendimento.
O Ministério
Público pede ainda que seja reformada a sentença na parte em que
reconheceu coisa julgada quanto a acordo firmado em ação civil pública,
promovida na década de 90 pelo Ministério Público Estadual, em relação à
primeira invasão do leito original do Rio Jaguaribe, uma vez que a
União (proprietária da área), o MPF e a Sudema sequer participaram desse
acordo. No entanto, para o Ministério Público Federal, mesmo que
prevaleça o raciocínio da sentença nesse aspecto, o magistrado deixou de
considerar as inúmeras obras irregularmente construídas sobre a área
após o acordo.
Os danos ao meio ambiente, decorrentes das obras
de instalação e de ampliação do shopping, “são tão evidentes e graves,
mesmo a olho nu”, que o Ibama constatou que “o estacionamento do
Shopping Manaíra só não flutua nas águas do rio Jaguaribe porque os
alicerces da construção do aludido empreendimento estão escancaradamente
encravados nas margens do referido rio, ou seja, em área de preservação
permanente”.
Redução indevida - Outra parte da
sentença, rebatida com veemência pelo MPF, diz respeito a um precedente
judicial utilizado pelo magistrado para justificar o entendimento de que
as obras de ampliação do shopping invadiram menor APP nas margens do
rio Jaguaribe. A sentença afirma que "a jurisprudência se consolidou" em
aceitar o recuo de 15 metros estabelecido pela Lei de Parcelamento do
Solo Urbano quanto a APPs, localizadas em áreas urbanas, em razão de não
ser possível "impor aos centros urbanos as mesmas restrições aplicáveis
às áreas de menor densidade populacional".
O órgão argumenta que
a afirmação contida na sentença é "temerária" porque se baseia em
apenas um precedente julgado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região
(Apelação Cível nº 5008060) que ainda está sujeito a reexame no âmbito
de recurso especial. Nesse caso, contrapõe o MPF, para que se pudesse
considerar o entendimento do TRF4 como "consolidado", seria preciso
demonstrar, no mínimo, tratar-se de uma posição acolhida por uma corte
nacional, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou por um número
elevado de precedentes assemelhados oriundos de vários tribunais locais
pátrios. Ao contrário, o STJ tem vários precedentes aplicando as
distâncias mínimas previstas no Código Florestal também a áreas urbanas,
como por exemplo o caso de um supermercado em Balneário Camboriú (SC) -
Recurso Especial nº 664.886/SC.
O
entendimento do Ministério Público é de que deve prevalecer o Código
Florestal, que concedeu especial proteção às APPs, abrangendo áreas
urbanas e rurais. Segundo o Código Florestal, a utilização das áreas
urbanas deve, sim, observar o que está disposto no plano diretor e nas
leis de uso do solo, mas respeitando os princípios e limites
estabelecidos pelo próprio código. Isto é, as leis municipais até
“poderiam ampliar as APPs, mas jamais reduzi-las”, argumenta.
Comunidade São José -
Quanto ao argumento mencionado pelo magistrado, no sentido de que
existem outras ocupações nas margens do mesmo rio, por comunidade de
baixa renda (Bairro São José), a apelação destaca que existem projetos
governamentais em andamento para a realocação da comunidade. Assim, caso
prevaleça a sentença, é bem provável que no futuro, o Manaíra Shopping
seja o único privilegiado a ocupar irregularmente as APPs do rio
Jaguaribe e até mesmo o próprio leito do rio.
Para o Ministério
Público, a comunidade de baixa renda merece tratamento diverso do que
seria devido ao shopping, cujos danos ambientais causados ao rio
Jaguaribe decorreram de busca por ampliação de lucros empresariais.
"Obviamente, o tratamento do direito à moradia de uma comunidade
desvalida deve ser diferente daquele conferido à ganância de uma grande
empresa infratora", argumenta o órgão, mostrando que a questão da
moradia de pessoas desamparadas recebe tratamento diferenciado na
legislação, que, inclusive, permite um recuo menor (da margem do rio)
para casos de ocupações com perfil de baixa renda, "com a possibilidade
de consolidação parcial prevista no artigo 7º, §2º, do novo Código
Florestal".
Pedidos reforçados – Além da
declaração da nulidade de todas as licenças ambientais concedidas pela
Sudema à empresa proprietária do shopping, o MPF pede a nulidade de
quaisquer inscrições de ocupação de terrenos de marinha efetivadas pela
União em favor da empresa. Também pede que o TRF5 determine à empresa
que providencie a completa remoção de todas as construções indevidamente
realizadas em APPs que estejam a 50 metros da margem do Rio Jaguaribe.
O
MPF ressalta que a APPs em que está erguido o Manaíra Shopping não é
área de propriedade privada, mas área pública de propriedade da União,
sujeita à mera ocupação precária do particular. Logo, “não há que se
falar sequer em restrição a direito de propriedade de particular pela
legislação ambiental”, como consta da sentença recorrida, mas sim de
“observância da Lei nº 9.636/98 que veda a inscrição de ocupação de
áreas da União que “estejam concorrendo ou tenham concorrido para
comprometer a integridade das áreas de uso comum do povo, de segurança
nacional, de preservação ambiental ou necessárias à preservação dos
ecossistemas naturais”.
Pedidos alternativos -
Caso o Tribunal negue os pedidos, o Ministério Público pede que seja
determinada, pelo menos, a manutenção de canal ao ar livre, com área
verde preservada nas margens do rio Jaguaribe e praça pública em seus
arredores, ou, em último caso, a colocação de área verde sobre a sua
cobertura.
Caso o Tribunal não determine a remoção total ou
parcial das edificações irregulares, pede-se que seja determinado o
perdimento de todas as construções ilegais ou, mais especificamente, de
toda a receita arrecadada em atividades econômicas do shopping, na área
degradada, em favor da União ou dos municípios de João Pessoa e
Cabedelo. Essa seria a consequência mais lógica e justa para a hipótese
de manutenção das construções irregulares em cima de APP em violação à
legislação, pois, dessa forma, o proveito econômico do ilícito seria
destinado permanentemente à coletividade. Somente assim, os
empreendedores “pensariam duas vezes antes de agredir gravemente
qualquer APP, pois estariam correndo o risco de perder investimentos na
área proibida”, argumenta o MP.
Caso o TRF5 acolha os pedidos
alternativos, o MPF quer que o Tribunal também determine a destinação
dos recursos para recuperação ambiental do próprio rio Jaguaribe, ao
longo de toda a sua extensão, bem como de ecossistemas a ele
relacionados de modo mais imediato, bem como para outros projetos de
recuperação ambiental nos municípios de João Pessoa ou de Cabedelo e no
Estado da Paraíba, nessa ordem de prioridade.
EIA/Rima -
O magistrado também afastou a necessidade de Estudo e Relatório de
Impacto Ambiental (EIA/Rima) pelo empreendedor, com base em laudo
pericial, segundo o qual a área ocupada pelo Manaíra Shopping está
abaixo de 100 hectares - tamanho mínimo determinado pela legislação
ambiental para exigência do EIA/Rima (Resolução Conama nº 01/86).
No
entanto, para o MPF, “o soterramento de um rio e a completa supressão
de APPs adjacentes justificariam por si sós tal exigência". O órgão
ainda argumenta que "obviamente não se encontra previsão desse caso na
legislação de regência do licenciamento ambiental", como apontou o
magistrado, porque "tal hipótese não é admitida ou sequer cogitada pelo
ordenamento jurídico pátrio". Logo, “se o Judiciário está criando essa
nova hipótese sem previsão legal, deveria determinar, no mínimo, a
realização de EIA/Rima”, argumenta.
Mais pedidos -
O Ministério Público ainda quer que a empresa seja condenada a publicar
o inteiro teor da sentença (ou um extrato resumido) nos três jornais de
maior circulação na Paraíba e que seja proibida de obter qualquer
financiamento ou incentivo dos órgãos e entidades governamentais, até
que demonstre ter reparado o dano causado na APPs.
O MPF pede
ainda que a Justiça eleve o valor de R$ 10 milhões fixado pela sentença
recorrida, a título de indenização pelos danos ambientais causados,
levando em conta a alta lucratividade do empreendimento, conforme
apuração mais precisa a ser realizada na liquidação do julgado.