OCEANOGRAFIA
11.março.2013 09:43:27
NO MAR, EM BUSCA DE ÁGUA
A cena lembra a de um bando de retirantes aglomerados em volta de um carro pipa no sertão nordestino. Só que no meio do oceano.
Assim que cada garrafão é içado das profundezas pelo guincho, uma
fila de pesquisadores com baldes, galões e garrafas térmicas vazias se
forma no convés do Navio Oceanográfico Alpha Crucis para coletar o
líquido precioso. Em poucos minutos, a água é separada e distribuída
pelos laboratórios da embarcação: 60 litros para genética de bactérias,
60 litros para análise de clorofila, mais 20 litros para microscopia de
plâncton, e por aí vai. Dia após dia, garrafa após garrafa, o ciclo se
repete cada vez que o navio “estaciona” em um novo ponto de coleta.
O líquido tão cobiçado pelos cientistas parece não ter nada de
especial. É água do mar, transparente e inodora; aparentemente igual à
que qualquer criança poderia coletar com um baldinho de praia na orla de
Santos. Só que as aparências enganam. Estamos em alto-mar, a 200 milhas
náuticas (370 km) do Porto de Santos, e o leito do oceano aqui não dá
pé para ninguém – está mais de 2 mil metros abaixo do casco do Alpha
Crucis, submerso em frio e escuridão permanentes. As amostras de água
coletadas aqui são bem diferentes das da praia, e valem ouro para a
oceanografia brasileira.
“É água, sim, mas uma água muito cara”, resume, com precisão
germânica, o alemão Rudiger Rottgers, único estrangeiro à bordo, numa
equipe de 18 professores e jovens cientistas de universidades de São
Paulo, do Paraná, do Rio Grande do Norte e da Paraíba.
Cada dia de operação do Alpha Crucis no mar custa cerca de R$ 54 mil,
incluindo combustível, alimentação, salários da tripulação e outros
gastos operacionais. O navio, de US$ 11 milhões, foi comprado em 2012
pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com a proposta de revolucionar
as ciências oceânicas no Brasil. Com 64 metros de comprimento e
autonomia para passar até 70 dias contínuos no mar, é o maior navio de
pesquisa civil da história da oceanografia nacional.
É fim de janeiro. Esta é a quarta expedição de pesquisa do Alpha
Crucis desde que o navio chegou ao Brasil, em maio de 2012. Três delas
dedicadas ao projeto Carbom (Caracterização Ambiental e Avaliação dos
Recursos Biogênicos Oceânicos e da Margem Continental Brasileira e Zona
Oceânica Adjacente), que tem como objetivo descrever e quantificar todos
os processos relacionados ao ciclo de carbono no oceano brasileiro. Um
desafio de proporções oceânicas, literalmente.
Os resultados serão cruciais para o estudo de questões relacionadas
às mudanças climáticas, à sustentabilidade da pesca, à biotecnologia e à
conservação da biodiversidade marinha. “O carbono é a base de tudo,
pois é a matéria-prima da matéria orgânica que alimenta todos os
processos biológicos e muitos dos processos bioquímicos do oceano”,
justifica o pesquisador Frederico Brandini, do Instituto Oceanográfico
da USP, que coordena o projeto. As pesquisas desta expedição,
representam apenas um componente (o biológico) do projeto como um todo.
Outros componentes envolvem questões físicas, químicas e geológicas do
ambiente marinho, abordadas em outras expedições, com instrumentos e
metodologias diferentes.
O objetivo geral é descrever como gira a “economia de carbono” do
oceano brasileiro, quantificando tudo que entra, tudo que sai; quanto
fica estocado, por quanto tempo, de que forma (no plâncton, nos peixes,
nos sedimentos ou dissolvido na água), e qual o saldo disso tudo para os
seres humanos, os seres marinhos e o planeta como um todo. “Sabemos
como esses processos funcionam qualitativamente, mas precisamos
entendê-los também quantitativamente para tomar decisões. Precisamos de
números”, explica Brandini. Do ponto de vista das mudanças climáticas, o
projeto permitirá dizer qual é a participação do oceano brasileiro nos
ciclos globais de carbono oceânico e atmosférico – um dado importante
nas discussões políticas e diplomáticas relacionadas ao tema.
Toda essa contabilidade está embutida de alguma forma nas amostras de
água trazidas à bordo. Por mais transparente que sejam, elas contêm
“escondidas” dentro delas milhões de células de plâncton e de moléculas
orgânicas dissolvidas. As quantias variam de acordo com a profundidade, a
distância da costa e outras características geofísicas do local. E é
justamente nessas diferenças que os cientistas estão interessados.
A maior parte da vida nos oceanos é microscópica, invisível ao olho
humano. Os produtores primários de biomassa (matéria orgânica), que em
terra são representados pelas árvores, gramíneas e outros vegetais, no
mar são organismos unicelulares. É o chamado fitoplâncton, composto de
bactérias e algas fotossintetizantes, que utilizam a luz solar para
juntar moléculas de carbono com outros elementos dissolvidos na água
(hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo, etc) e produzir matéria
orgânica. São eles, ao mesmo tempo, os principais magnatas e operários
da economia de carbono marinha; a base da pirâmide alimentar que
sustenta a vida nos oceanos.
FOTO: Técnicos e pesquisadores do IO-USP preparam a Roseta de Niskin para descer, no convés do Alpha Crucis.
ROTINA DE TRABALHO
A expedição dura seis dias, com poucas horas de sono
entre cada um. O navio não para de se mexer jamais, mesmo quando está
“estacionado” (ou melhor, “tentando” ficar estacionado), e a sensação é
que o trabalho à bordo também não para nunca. Centenas de amostras de
água, de várias profundidades, são coletadas de um total de 14 pontos
(chamados “estações oceanográficas”) selecionados ao longo do percurso,
para serem levadas de volta a terra para análise ao fim da expedição.
O primeiro passo no processo de coleta é traçar um perfil de
características da coluna d’água. Quando o GPS indica que o navio está
no ponto desejado, um aparato conhecido como Roseta de Niskin é baixado
com a ajuda de um guincho no lado boreste (direito) do navio, com vários
sensores acoplados. À medida que a roseta desce, pesquisadores reunidos
no Laboratório de Aquisição de Dados do navio assistem, em tempo real, à
formação de um gráfico com dados de profundidade, temperatura,
salinidade e fluorescência da água.
As linhas de temperatura (vermelha) e salinidade (azul) seguem
inalteradas até uns 20 metros, depois caem vertiginosamente à medida que
a profundidade aumenta. Já a linha verde, de fluorescência, segue num
zigue-zague constante, parecendo desenhar uma cadeia de montanhas na
tela do computador – sempre com um pico notavelmente mais alto do que os
outros, que se destaca da cordilheira como um Everest na Serra do Mar.
Esse pico de fluorescência tem um papel essencial no contexto da
pesquisa. A fluorescência é um indicador da quantidade de clorofila,
que, por sua vez, é um indicador da quantidade de organismos
planctônicos fotossintetizantes presentes em cada camada d’água. A
profundidade na qual esse “Everest de clorofila” se ergue no gráfico
depende da profundidade do leito marinho (isóbata) e da distância da
costa. Pode ser a 20 metros, pode ser a 120 metros. Quanto maior a
isóbata e maior a distância da costa, mais rarefeita de vida a água fica
e mais profundo aparece o pico de clorofila.
“Estamos entrando já nos chamados desertos oceânicos”, explica
Brandini, quando chegamos à isóbata de 2 mil metros. “Para a água do mar
ser fértil, luz e nutrientes precisam ocorrer no mesmo lugar e ao mesmo
tempo; só que isso é um tanto raro no oceano. É o mesmo conceito que se
aplica a uma folha de alface, que precisa ao mesmo tempo de água, luz e
nutrientes do solo para crescer. Aqui, água não falta; mas a luz que
penetra nas águas quentes superficiais está muito distante dos
nutrientes, que ficam concentrados nas águas mais frias e mais
profundas.” Por causa disso, o fitoplâncton nessas áreas mais remotas
tende a se concentrar no limite mais inferior da zona eufótica
(iluminada), onde ainda há luz suficiente para realizar fotossíntese e a
disponibilidade de nutrientes é um pouco maior do que na superfície.
Com o perfil da coluna d’água completo na tela do computador,
Brandini discute com os pesquisadores sobre quais profundidades serão
amostradas e ordena pelo rádio o recolhimento da roseta. Aí começam as
coletas. Acima dos sensores, a roseta contém um arranjo (em forma de
rosa, daí o nome) de 12 garrafas de 10 litros cada uma, que podem ser
fechadas eletronicamente e individualmente, em profundidades distintas,
no caminho do equipamento até a superfície.
FOTO: Roseta de Niskin submersa, com as tampas das garrafas abertas.
Seria “fácil” assim se a roseta não tivesse sido avariada num dia de
ventania e mar bravo no início na expedição. Em uma das subidas, ela se
chocou contra o casco do navio, e o controle eletrônico de fechamento
das garrafas parou de funcionar. Por sorte, a equipe tinha uma garrafa
sobressalente, de 30 litros, que podia ser afundada individualmente e
fechada por meio de um peso (chamado mensageiro) lançado pelo cabo de
aço quando a garrafa chegava à profundidade desejada. Sem isso, a
expedição teria sido abortada logo no segundo dia. A roseta continuou
sendo usada, mas apenas como um “meio de transporte” para os sensores
que faziam o perfil da coluna d’água.
O lado ruim foi ter de fazer muito mais lançamentos de garrafa em
cada ponto de coleta, já que a capacidade de coleta por lançamento foi
reduzida de 120 litros para 30 litros, e a “sede” dos cientistas era
grande.
Tipicamente, coleta-se amostras de água de seis profundidades: uma do pico de clorofila, mais duas abaixo e duas acima dele. Um processo que pode consumir várias horas de trabalho, especialmente nas isóbatas mais profundas. Para coletar uma amostra de água a 1.500 metros, por exemplo, leva-se mais de uma hora – incluindo o tempo de descida e subida da garrafa, mais o tempo de descida do mensageiro.
Em operações oceânicas, nada é trivial. Nem mesmo encher uma garrafa de água.
Enquanto técnicos e tripulantes cuidam das operações de guincho para
fazer as coletas no convés, e os pesquisadores processam suas amostras
nas bancadas dos laboratórios, o comandante do Alpha Crucis e seus
imediatos também ficam ocupados na cabine de comando, sempre atentos ao
GPS e à direção das ondas e do vento para manter o navio na posição mais
estável possível durante todo o processo.
Para ter validade científica, as amostras não podem ser colhidas de
qualquer maneira, em qualquer lugar. E como as coisas não gostam de
ficar paradas no mar, é preciso reposicionar o navio constantemente para
garantir que a coletas sejam todas feitas mais ou menos sobre o mesmo
ponto em cada estação – e que os pesquisadores não levem uma surra das
ondas a todo momento, e que os instrumentos submersos não sejam
arrastados para debaixo do navio pela correnteza, o que seria perigoso
para todos.
FOTO: Técnicos do IO-USP preparam uma garrafa de Niskin de 30 litros para coleta de água.
PROVA DE AUTONOMIA
A expedição foi originalmente planejada para durar duas semanas,
aproveitando o tempo de autonomia do Alpha Crucis. O plano era ir até a
Elevação do Rio Grande, uma grande “chapada” submersa que se eleva do
assoalho marinho a cerca de 600 milhas náuticas (1.100 km) da costa,
numa profundidade de 4 mil metros. Mas um atraso de uma semana na saída
(por conta de problemas técnicos no navio) forçou Brandini a encurtar o
trajeto em dois terços.
Poderia até ter ido mais longe e mais fundo, mas o professor resolveu
dar meia volta antes do previsto e passar mais tempo na linha dos mil
metros de profundidade, para reinvestigar algo inusitado: o aparecimento
de um pico duplo de clorofila na Estação 4, ainda no segundo dia de
navegação. O primeiro e maior pico apareceu na tela a 110 metros de
profundidade. Normal. O segundo, um pouco menor, apareceu a 230 metros.
Totalmente anormal, ainda mais numa profundidade dessas, abaixo da zona
eufótica.
“Nessa profundidade já não tem mais quase nada de luz; aos seus olhos
seria tudo preto”, explica Brandini. “É como se você descobrisse uma
planta que cresce no escuro. Nunca vi um pico duplo como esse.” Amostras
de água dos dois picos foram coletadas, mas a identificação dos
organismos presentes em cada uma delas só será possível depois de
estudos mais detalhados em terra, envolvendo análises genéticas e
morfológicas.
“Nunca mais vamos ver isso”, previu o biólogo Tarcísio Cordeiro,
professor da Universidade Federal da Paraíba, quando o pico duplo
apareceu pela primeira vez.
Três dias depois, Brandini resolve desafiar essa previsão e voltar ao
local para ver se o segundo pico continuava lá e fazer novas coletas em
horários e pontos diferentes da mesma região. Na primeira descida dos
sensores, o segundo pico reaparece, só que mais fraco. O navio segue
sobre a isóbata de mil metros, fazendo mais prospecções para o sul e
para o norte. Mas o pico desaparece na sequência. “Ele veio e se foi”,
lamenta Brandini, curioso para saber que tipo de plâncton era aquele e o
que estava fazendo a 230 metros de profundidade.
Ainda que a caçada aos segundo pico tenha sido infrutífera, a
capacidade de dar meia volta com o navio para procurá-lo é simbólica da
importância do Alpha Crucis para a oceanografia brasileira. Apesar dos
seus 8 mil quilômetros de costa e 4,5 milhões de quilômetros quadrados
de território marinho, o Brasil tem uma deficiência profunda e histórica
em sua oceanografia: a falta de navios de pesquisa acadêmica para
vasculhar e compreender esse gigantesco universo oceânico.
Com exceção do Navio Oceanográfico Professor W. Besnard, aposentado
em 2008 por conta de um incêndio à bordo, pesquisadores que queriam ir
um pouco mais longe da costa por mais tempo eram obrigados a “pegar
carona” em navios de pesquisa estrangeiros ou de empresas privadas, da
Marinha ou da Petrobrás – nos quais a ciência acadêmica não é
necessariamente a prioridade, e seria impensável mudar de rumo para
procurar uma nuvem de fitoplâncton.
“Nunca tive um navio de pesquisa assim, à minha disposição, então
tenho de aproveitar”, brinca Brandini. “O fenômeno apareceu na nossa
frente e fomos atrás dele. É assim que se faz ciência, é assim que se
faz descobertas; não seguindo um curso predeterminado todas as vezes.”
É apenas o início de uma longa jornada científica oceânica, prevista
para consumir três anos de pesquisa, incluindo mais 10 expedições do
Carbom com o Alpha Crucis no Sudeste e no Nordeste. O projeto faz parte
do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para o Oceanos, um grande
projeto envolvendo 14 instituições de pesquisa e 120 cientistas.
FOTO: Pesquisadores no Laboratório de Aquisição de Dados do Alpha
Crucis observam a evolução dos dados de profundidade, temperatura,
salinidade e fluorescência (indicativo da concentração de clorofila)
enviados pelos sensores acoplados à Roseta de Niskin, para despois
decidir as profundidades nas quais serão feitas as coletas de água.
FOTO: O Alpha Crucis, atracado no Porto de Santos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário