OCEANOGRAFIA
11.março.2013 09:43:11
FOTO: Filtro impregnado de fitoplâncton.
PALAVRA DE ORDEM NOS LABORATÓRIOS É ‘FILTRAR’
Nos laboratórios internos do Alpha Crucis, milhares
de litros de água marinha são lentamente reduzidos ao longo da expedição
a algumas dezenas de tubinhos congelados e filtros de papel do tamanho
de moedas, impregnados de algas e de bactérias microscópicas. A palavra
de ordem nas bancadas flutuantes é “filtrar”. “Vamos coar o Atlântico
Sul inteiro”, brinca o professor Frederico Brandini, do Instituto
Oceanográfico da USP.
O navio é, essencialmente, uma estação móvel de coleta e
processamento de amostras. O primeiro laboratório, chamado “molhado”,
fica diretamente conectado ao convés, separado apenas por uma grande
porta de madeira com uma janela redonda no meio. Bem na frente dela, em
meio a um emaranhado de tubos plásticos transparentes conectados a
bombas e filtros, no que parece ser os fundos de uma loja de aquários,
estão as alunas de mestrado e doutorado Natascha Bergo e Catherine
Ribeiro, do IO-USP, que são sempre as primeiras na fila para pegar água
no convés. Vão e vêm a todo momento, carregando garrafões de dez litros
embrulhados em sacos pretos – para evitar que as bactérias que acabaram
de sair do mar, acostumadas ao escurinho das profundezas, não se
“assustem” com a luz do navio na superfície.
O objetivo da pesquisa é estudar a expressão gênica das
cianobactérias – bactérias marinhas que fazem fotossíntese – no seu
ambiente natural. “Queremos saber quais genes estavam ligados ou
desligados no momento da coleta, por isso é importante evitar que elas
mudem de comportamento (e alterem sua expressão gênica) ao serem tiradas do mar”, diz Catherine.
Dez litros de água de cada profundidade coletada são lentamente
bombeados através de filtros brancos do tamanho de bolachas e perfurados
por poros “invisíveis” de 0,2 micrômetro – apertados demais até mesmo
para uma bactéria passar. “A água que sai na outra ponta é completamente
estéril, não tem nada”, diz Catherine. Fica tudo retido nos filtros.
E quanto maior a quantidade de fitoplâncton nas amostras, mais verdes
eles ficam. Ao final da filtragem, cada filtro é dobrado, colocado em
um tubinho plástico e congelado em nitrogênio líquido, para transporte
de volta aos laboratórios do IO-USP. Dois filtros para cada 10 litros de
água: um para análise de DNA e outro, de RNA.
Na outra ponta da bancada, o estudante de oceanografia Vadim Harlamov
passa horas colocando água do mar em uma sequência de filtros que, no
fim das contas, darão aos cientistas uma medida das concentrações de
carbono, nitrogênio, fósforo e outros elementos químicos essenciais da
matéria orgânica presente em diferentes profundidades. O tamanho dos
filtros é um pouco menor neste caso: do tamanho de uma moeda de R$ 1.
Mas a porosidade é um pouco maior: 0,5 micrômetro. “Só passa bactéria”,
avisa Vadim – mas apenas as bactérias menores, não fotossintetizantes,
que não interessam para o estudo.
O aparato todo não tem nada de sofisticado; parece algo montado por
crianças para uma feira de ciências na escola. As únicas peças compradas
prontas são os filtros e a bomba de sucção; o resto é tudo produzido
“em casa”, para economizar. As garrafas nas quais são colocadas as
amostras são garrafas PET de supermercado, amarradas com elásticos aos
armários para não balançarem. “É tudo na gambiarra mesmo, mas o
importante é que funciona”, declara Vadim. “O objetivo é filtrar a
água.”
As amostras de água mais profunda podem levar horas para passar pelo
filtro, por causa da maior concentração de sedimentos e matéria
orgânica. Os filtros finais, alguns bem verdes, outros bem clarinhos –
dependendo da quantidade de clorofila em cada amostra – são guardados em
um estojo preto, parecido com uma caixa de bombons, e congelados para
transporte.
FOTO: O aluno Vadim Harlamov, do IO-USP, prepara amostras de água para filtragem.
RESPIRAÇÃO OCEÂNICA
Em outro laboratório, alunos medem a taxa de respiração de
microcrustáceos chamados copépodes, que são os animais mais abundantes
do plâncton marinho – neste caso, do zooplâncton, formado pelos pequenos
animais que se alimentam das algas e bactérias do fitoplâncton;
exercendo no mar o mesmo papel que os herbívoros em terra.
Neste caso, a filtragem ocorre ainda dentro do oceano, quando a
coleta é feita por meio de uma rede em forma de funil – que pode ser
arrastada horizontalmente pelo navio numa profundidade específica ou
baixada e erguida verticalmente, com o navio parado, para obter uma
amostra dos organismos presentes em toda a coluna d’água. O zooplâncton
fica concentrado num copo coletor acoplado ao fundo do funil, com uma
tela que deixa passar os organismos menores (tipo microalgas e bactérias
do fitoplâncton) mas retém os maiores, formando uma “sopa” densa de
copépodes frenéticos e organismos gelatinosos chamados salpas.
Copépodes individuais são, então, colocados dentro de um pequeno
aparelho capaz de medir sua taxa de respiração. Os estudos indicam que a
quantidade média de oxigênio consumida por um bicho desses é de
aproximadamente 9,5µgO2/mgPS/h (microgramas de oxigênio por miligrama de
peso seco do animal por hora), segundo o aluno Marcel Miraldo, da Unesp
de São Vicente, encarregado das medições.
“Se eu sei quanto um bicho desses respira, e quantos desses bichos
tem no mar, eu sei quanto de oxigênio e de gás carbônico está entrando e
saindo do oceano por conta deles”, explica o professor Brandini. Um
número nada desprezível, diz ele, considerando que esses bichinhos todos
somados “consomem muito mais oxigênio e produzem muito mais gás
carbônico do que todas as baleias do oceano juntas”.
Numa outra mesa, o professor Tarcísio Cordeiro, da Universidade
Federal da Paraíba, vira noites na frente do microscópio, analisando
organismos planctônicos que ele extrai de amostras de água coadas com um
filtro de 10 micrômetros. Pequenas plateias se formam ao seu redor de
tempos em tempos para observar os estranhos seres microscópicos que
aparecem enormes na tela de visualização. Entre eles, belas algas
unicelulares revestidas com intricadas carapaças de vidro, chamadas
diatomáceas, e um monte de “bichos” agitados, chamados dinoflagelados,
que correm e rodopiam de um lado para outro como loucos a todo momento.
“São organismos que parecem muito primitivos, mas que já estão aqui
há muito mais tempo do que nós, aguentando muito mais tranco do que
nós”, elogia Cordeiro. “E vão continuar aqui por muito mais tempo do que
nós ainda.”
A maioria dos organismos ele conhece de cabeça, mas vez ou outra ele
para, aumenta o zoom do microscópio e pergunta: “Que diabos é isso?”.
Cordeiro quer entender melhor a composição e a distribuição dos
organismos planctônicos maiores do que 10 micrômetros no oceano
brasileiro – algo que varia de acordo com a profundidade, distância da
costa, incidência de correntes, turbidez da água e outros fatores. Ele
voltará para seu laboratório na Paraíba com dezenas de amostras
concentradas de água e dezenas de horas de vídeo com gravações das
observações feitas dentro do navio (também com um sistema “caseiro”
improvisado, com um webcam acoplada ao microscópio).
FOTO: O prof. Tarcísio Cordeiro, da UFPB, observa imagem de uma diatomácea no microscópio.
A BASE DE TUDO
Cada um desses microrganismos, isoladamente, não faz muita diferença
no mundo. Somados, porém, as cianobactérias e o fitoplâncton são
responsáveis por quase 50% da fotossíntese do planeta – e, portanto,
quase 50% do oxigênio na atmosfera, segundo os pesquisadores. “Tudo que
uma árvore faz na superfície acontece em uma única célula de
fitoplâncton no mar”, compara Brandini. Basta respirar para entender a
importância de estudá-las.
As cianobactérias, mais especificamente, são as superestrelas
anônimas da microbiologia marinha – desconhecidas do grande público,
adoradas pelos cientistas e absolutamente cruciais para a vida nos
oceanos (e até fora deles). Foram elas que injetaram oxigênio na
atmosfera terrestre pela primeira vez em quantidades significativas,
cerca de 2,3 bilhões de anos atrás, e são elas, até hoje, os organismos
fotossintetizantes mais abundantes dos oceanos.
“Elas são lindas; sou apaixonada por elas”, diz a bióloga Janaína
Rigonato, da Unesp de São José do Rio Preto, no interior paulista – mais
uma que varou noites filtrando água no Alpha Crucis, e que vai voltar
para casa cheia de filtros congelados, impregnados de bactérias. Janaína
coordena um projeto para construção de um banco de cultivo de
cianobactérias, em parceria com outros pesquisadores da Unesp e a
professora Marli Fiore, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da
USP, o que permitirá estudá-las com muito mais eficiência no
laboratório.
“Elas são extremamente difíceis de cultivar”, conta Janaína. “Pouquíssimas pessoas no mundo conseguem fazer isso hoje.”
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