sábado, 16 de março de 2013

Reportagem Especial: À bordo do Alpha Crucis (2 de 2)

OCEANOGRAFIA
11.março.2013 09:43:11
 

FOTO: Filtro impregnado de fitoplâncton.

PALAVRA DE ORDEM NOS LABORATÓRIOS É ‘FILTRAR’
Nos laboratórios internos do Alpha Crucis, milhares de litros de água marinha são lentamente reduzidos ao longo da expedição a algumas dezenas de tubinhos congelados e filtros de papel do tamanho de moedas, impregnados de algas e de bactérias microscópicas. A palavra de ordem nas bancadas flutuantes é “filtrar”. “Vamos coar o Atlântico Sul inteiro”, brinca o professor Frederico Brandini, do Instituto Oceanográfico da USP.

O navio é, essencialmente, uma estação móvel de coleta e processamento de amostras. O primeiro laboratório, chamado “molhado”, fica diretamente conectado ao convés, separado apenas por uma grande porta de madeira com uma janela redonda no meio. Bem na frente dela, em meio a um emaranhado de tubos plásticos transparentes conectados a bombas e filtros, no que parece ser os fundos de uma loja de aquários, estão as alunas de mestrado e doutorado Natascha Bergo e Catherine Ribeiro, do IO-USP, que são sempre as primeiras na fila para pegar água no convés. Vão e vêm a todo momento, carregando garrafões de dez litros embrulhados em sacos pretos – para evitar que as bactérias que acabaram de sair do mar, acostumadas ao escurinho das profundezas, não se “assustem” com a luz do navio na superfície.

O objetivo da pesquisa é estudar a expressão gênica das cianobactérias – bactérias marinhas que fazem fotossíntese – no seu ambiente natural. “Queremos saber quais genes estavam ligados ou desligados no momento da coleta, por isso é importante evitar que elas mudem de comportamento (e alterem sua expressão gênica) ao serem tiradas do mar”, diz Catherine.

Dez litros de água de cada profundidade coletada são lentamente bombeados através de filtros brancos do tamanho de bolachas e perfurados por poros “invisíveis” de 0,2 micrômetro – apertados demais até mesmo para uma bactéria passar. “A água que sai na outra ponta é completamente estéril, não tem nada”, diz Catherine. Fica tudo retido nos filtros.

E quanto maior a quantidade de fitoplâncton nas amostras, mais verdes eles ficam. Ao final da filtragem, cada filtro é dobrado, colocado em um tubinho plástico e congelado em nitrogênio líquido, para transporte de volta aos laboratórios do IO-USP. Dois filtros para cada 10 litros de água: um para análise de DNA e outro, de RNA.

Na outra ponta da bancada, o estudante de oceanografia Vadim Harlamov passa horas colocando água do mar em uma sequência de filtros que, no fim das contas, darão aos cientistas uma medida das concentrações de carbono, nitrogênio, fósforo e outros elementos químicos essenciais da matéria orgânica presente em diferentes profundidades. O tamanho dos filtros é um pouco menor neste caso: do tamanho de uma moeda de R$ 1. Mas a porosidade é um pouco maior: 0,5 micrômetro. “Só passa bactéria”, avisa Vadim – mas apenas as bactérias menores, não fotossintetizantes, que não interessam para o estudo.

O aparato todo não tem nada de sofisticado; parece algo montado por crianças para uma feira de ciências na escola. As únicas peças compradas prontas são os filtros e a bomba de sucção; o resto é tudo produzido “em casa”, para economizar. As garrafas nas quais são colocadas as amostras são garrafas PET de supermercado, amarradas com elásticos aos armários para não balançarem. “É tudo na gambiarra mesmo, mas o importante é que funciona”, declara Vadim. “O objetivo é filtrar a água.”

As amostras de água mais profunda podem levar horas para passar pelo filtro, por causa da maior concentração de sedimentos e matéria orgânica. Os filtros finais, alguns bem verdes, outros bem clarinhos – dependendo da quantidade de clorofila em cada amostra – são guardados em um estojo preto, parecido com uma caixa de bombons, e congelados para transporte.

FOTO: O aluno Vadim Harlamov, do IO-USP, prepara amostras de água para filtragem.

RESPIRAÇÃO OCEÂNICA
Em outro laboratório, alunos medem a taxa de respiração de microcrustáceos chamados copépodes, que são os animais mais abundantes do plâncton marinho – neste caso, do zooplâncton, formado pelos pequenos animais que se alimentam das algas e bactérias do fitoplâncton; exercendo no mar o mesmo papel que os herbívoros em terra.

Neste caso, a filtragem ocorre ainda dentro do oceano, quando a coleta é feita por meio de uma rede em forma de funil – que pode ser arrastada horizontalmente pelo navio numa profundidade específica ou baixada e erguida verticalmente, com o navio parado, para obter uma amostra dos organismos presentes em toda a coluna d’água. O zooplâncton fica concentrado num copo coletor acoplado ao fundo do funil, com uma tela que deixa passar os organismos menores (tipo microalgas e bactérias do fitoplâncton) mas retém os maiores, formando uma “sopa” densa de copépodes frenéticos e organismos gelatinosos chamados salpas.

Copépodes individuais são, então, colocados dentro de um pequeno aparelho capaz de medir sua taxa de respiração. Os estudos indicam que a quantidade média de oxigênio consumida por um bicho desses é de aproximadamente 9,5µgO2/mgPS/h (microgramas de oxigênio por miligrama de peso seco do animal por hora), segundo o aluno Marcel Miraldo, da Unesp de São Vicente, encarregado das medições.

“Se eu sei quanto um bicho desses respira, e quantos desses bichos tem no mar, eu sei quanto de oxigênio e de gás carbônico está entrando e saindo do oceano por conta deles”, explica o professor Brandini. Um número nada desprezível, diz ele, considerando que esses bichinhos todos somados “consomem muito mais oxigênio e produzem muito mais gás carbônico do que todas as baleias do oceano juntas”.

Numa outra mesa, o professor Tarcísio Cordeiro, da Universidade Federal da Paraíba, vira noites na frente do microscópio, analisando organismos planctônicos que ele extrai de amostras de água coadas com um filtro de 10 micrômetros. Pequenas plateias se formam ao seu redor de tempos em tempos para observar os estranhos seres microscópicos que aparecem enormes na tela de visualização. Entre eles, belas algas unicelulares revestidas com intricadas carapaças de vidro, chamadas diatomáceas, e um monte de “bichos” agitados, chamados dinoflagelados, que correm e rodopiam de um lado para outro como loucos a todo momento.

“São organismos que parecem muito primitivos, mas que já estão aqui há muito mais tempo do que nós, aguentando muito mais tranco do que nós”, elogia Cordeiro. “E vão continuar aqui por muito mais tempo do que nós ainda.”

A maioria dos organismos ele conhece de cabeça, mas vez ou outra ele para, aumenta o zoom do microscópio e pergunta: “Que diabos é isso?”. Cordeiro quer entender melhor a composição e a distribuição dos organismos planctônicos maiores do que 10 micrômetros no oceano brasileiro – algo que varia de acordo com a profundidade, distância da costa, incidência de correntes, turbidez da água e outros fatores. Ele voltará para seu laboratório na Paraíba com dezenas de amostras concentradas de água e dezenas de horas de vídeo com gravações das observações feitas dentro do navio (também com um sistema “caseiro” improvisado, com um webcam acoplada ao microscópio).

FOTO: O prof. Tarcísio Cordeiro, da UFPB, observa imagem de uma diatomácea no microscópio.

A BASE DE TUDO
Cada um desses microrganismos, isoladamente, não faz muita diferença no mundo. Somados, porém, as cianobactérias e o fitoplâncton são responsáveis por quase 50% da fotossíntese do planeta – e, portanto, quase 50% do oxigênio na atmosfera, segundo os pesquisadores. “Tudo que uma árvore faz na superfície acontece em uma única célula de fitoplâncton no mar”, compara Brandini. Basta respirar para entender a importância de estudá-las.

As cianobactérias, mais especificamente, são as superestrelas anônimas da microbiologia marinha – desconhecidas do grande público, adoradas pelos cientistas e absolutamente cruciais para a vida nos oceanos (e até fora deles). Foram elas que injetaram oxigênio na atmosfera terrestre pela primeira vez em quantidades significativas, cerca de 2,3 bilhões de anos atrás, e são elas, até hoje, os organismos fotossintetizantes mais abundantes dos oceanos.

“Elas são lindas; sou apaixonada por elas”, diz a bióloga Janaína Rigonato, da Unesp de São José do Rio Preto, no interior paulista – mais uma que varou noites filtrando água no Alpha Crucis, e que vai voltar para casa cheia de filtros congelados, impregnados de bactérias. Janaína coordena um projeto para construção de um banco de cultivo de cianobactérias, em parceria com outros pesquisadores da Unesp e a professora Marli Fiore, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP, o que permitirá estudá-las com muito mais eficiência no laboratório.

“Elas são extremamente difíceis de cultivar”, conta Janaína. “Pouquíssimas pessoas no mundo conseguem fazer isso hoje.”



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