sábado, 22 de dezembro de 2012

Água com cafeína

Pesquisadores encontram cafeína em amostras de água potável de cidades brasileiras. A substância é indicadora da presença de esgoto no manancial e alerta para a possibilidade de que outros compostos indesejados também estejam chegando às torneiras. 
 
Por: Joyce Santos
 
Publicado em 20/12/2012 | Atualizado em 20/12/2012

 
Água com cafeína
Pesquisa avalia água potável de cidades brasileiras e sugere que o processo
de tratamento realizado no país pode não ser suficiente para retirar
contaminantes químicos da água. (foto: Cassiana C. Montagner)


A água que chega a nossas casas passa por um tratamento que obedece a requisitos legais. Mas será que isso impede que ela chegue às torneiras livre de substâncias potencialmente prejudiciais? É o que pesquisadores de diversas universidades brasileiras tentam descobrir em estudo coordenado pelo Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas (INCTAA).

“Estamos tentando identificar e quantificar alguns contaminantes emergentes – substâncias que, em geral, ainda não estão legisladas – na água tratada de capitais brasileiras”, explica Wilson Jardim, químico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do estudo.

“Estamos tentando identificar e quantificar alguns contaminantes emergentes na água tratada de capitais brasileiras”
Na primeira rodada de coletas, concluída no ano passado, foram recolhidas 49 amostras em 15 capitais e no Distrito Federal – a água era retirada dos canos de entrada das casas. “Coletamos uma amostra para cada 500 mil habitantes e, na medida do possível, procuramos mapear a rede de coleta e distribuição de forma que pudéssemos obter amostras provenientes de diferentes mananciais”, explica o químico Marco Grassi, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Além do Distrito Federal, os pesquisadores recolheram água em Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Belo Horizonte, Goiânia, Cuiabá, Porto Velho, Palmas, Recife, João Pessoa, Natal e Fortaleza.

Entre 22 substâncias pesquisadas – escolhidas por representarem diferentes produtos utilizados em atividades domésticas, industriais e agrícolas –, a cafeína é de especial interesse para os pesquisadores. “Ela é considerada um indicador da qualidade dos mananciais e do tratamento de água”, explica Jardim. “É a impressão digital da presença de esgoto”, resume.

Ele e Grassi ressaltam que a substância em si não apresenta risco do ponto de vista da saúde púbica. “A grande questão é que ela é um traçador, ou seja, se a cafeína está presente na água tratada, é provável que outros compostos químicos também não tenham sido eliminados durante o tratamento da água”, explica Grassi.

Cafeína
A cafeína é considerada um indicador da qualidade dos mananciais e
do tratamento de água. A sua presença alerta para a contaminação
por esgoto e, portanto, para a presença de outros contaminantes
químicos na água. (foto: Wikimedia Commons)
A cafeína foi quantificada em 92% das 49 amostras. A capital com a maior concentração média de cafeína foi Porto Alegre, com 166 nanogramas por litro de água (ng/L). Em segundo lugar está São Paulo, com 118 ng/L, e, em terceiro, Belo Horizonte, com 32 ng/L. Apenas em Fortaleza a cafeína não pôde ser quantificada segundo parâmetros estatísticos, pois as concentrações eram muito baixas.

“Nós também encontramos e conseguimos quantificar a atrazina, um herbicida amplamente utilizado no Brasil; o triclosan, um agente biocida presente em vários produtos de higiene pessoal; e a fenolftaleína, muito utilizada em titulações nos laboratórios de química”, lista Grassi.

De todas as capitais incluídas no estudo, a atrazina só não foi encontrada em Palmas e em Natal. As concentrações nas outras localidades foram baixas e variaram entre 0,6 ng/L e 6 ng/L – o valor máximo foi encontrado em Curitiba. Já o triclosan e a fenolftaleína foram encontrados apenas em Porto Alegre e em Palmas, respectivamente.
 

Impactos na saúde

 

De acordo com os pesquisadores, os resultados, ainda que parciais, mostram que o processo de tratamento de água no Brasil, apesar de ser eficiente para remover microrganismos, pode não funcionar tão bem para eliminar contaminantes químicos.

Tratamento de água
Na primeira fase do estudo, os pesquisadores encontraram cafeína
em 92% das amostras. A maior concentração média da substância foi
encontrada na água de Porto Alegre. Por outro lado, não foi possível quantificar
a cafeína nas amostras de Fortaleza. (foto: Cassiana C. Montagner)
Grassi explica que as baixas concentrações encontradas são, em grande parte, resultantes da degradação parcial desses contaminantes no ambiente e da sua remoção, também parcial, durante o tratamento de esgoto (tanto pela adição de cloro quanto pela retirada de lodo acumulado durante o processo).
 
A preocupação é que eles venham a interferir na saúde humana. “Já existem estudos que mostram que alguns contaminantes, mesmo em pequenas quantidades, podem afetar negativamente uma série de organismos, como espécies de peixes, anfíbios e répteis”, lembra Wilson. Nos seres humanos, no entanto, essa ainda é uma questão a ser respondida.

“É importante ter em mente que a contaminação biológica sempre traz consigo uma resposta aguda na população, como diarreia, vômito e cólera. Já a contaminação química está associada a efeitos crônicos, que podem se manifestar somente em longo prazo, o que acaba dificultando a avaliação do risco relacionado à exposição a essas substâncias”, explica Jardim.

Ele defende que, diante desse cenário, deve-se agir de acordo com o princípio da precaução. “Apesar de os compostos não serem contemplados pela legislação [com exceção da atrazina], entendemos que as concessionárias devem lançar mão de maior polimento no tratamento da água”, diz. “Se a substância pode causar riscos, mesmo que ainda não possamos determiná-los cientificamente, tal possibilidade deve ser levada em consideração quando se pensa na potabilidade da água”, completa o pesquisador, lembrando que a própria legislação prevê esse tipo de cuidado.

Jardim: Apesar de os compostos não serem contemplados pela legislação, entendemos que as concessionárias devem lançar mão de maior polimento no tratamento da água
Grassi explica que a tecnologia para a retirada desses contaminantes da água já existe. “É uma série de tecnologias de polimento que podemos chamar de processos oxidativos avançados”, afirma. “Caso elas fossem incluídas no tratamento da água, o custo geral do procedimento poderia aumentar – esse é um dos principais argumentos utilizados pelas concessionárias – mas, em se tratando da saúde humana, acredito que vale a pena revermos a política e a estratégia do setor”, complementa.
 
“Devemos cobrar das concessionárias esse tipo de ação. O tratamento de fim de linha, sob responsabilidade do usuário, nem sempre surte os resultados esperados”, defende Jardim. Ele lembra que os filtros precisam passar por manutenção cuidadosa. “Os sítios de adsorção dos filtros devem estar sempre livres, o que pode ser conseguido através de processos térmicos, de retrolavagem ou pelo uso de solventes como álcool e acetona”, explica. “Todos esses procedimentos exigem conhecimento, cuidados especiais e devem ser feitos com frequência”, conclui.

Fontes de contaminação

 
Este ano os pesquisadores realizaram uma segunda rodada de coletas, mas as análises ainda estão em andamento e os dados só devem estar disponíveis no início do ano que vem. Eles pretendem verificar se o padrão encontrado no ano passado irá se repetir e aproveitaram para aumentar em seis a quantidade de capitais avaliadas – dentre elas estão Belém e Manaus, o que amplia a cobertura do estudo na região Norte.
Grassi: Para Porto Alegre, podemos relacionar a alta concentração média de cafeína com o hábito de consumo de erva mate (chimarrão) da população
Outra pretensão é tentar identificar as fontes de contaminação. “Para Porto Alegre, por exemplo, podemos relacionar a alta concentração média de cafeína com o hábito de consumo de erva mate (chimarrão) da população”, exemplifica Grassi, lembrando que afirmações desse tipo exigem maior aprofundamento dos estudos.

Jardim explica que os detalhes da pesquisa e os resultados completos serão divulgados ao final do projeto e que a intenção do grupo é publicar um livro ainda em 2013. O projeto é financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e envolve, além da Unicamp e da UFPR, a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf).

Joyce Santos 
Ciência Hoje On-line


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