Pesquisa acusa presença de contaminantes emergentes na água fornecida em 16 capitais brasileiras
A
água potável fornecida em 16 capitais brasileiras, onde vivem
aproximadamente 40 milhões de pessoas, apresenta contaminação por
substâncias ainda não legisladas, mas que podem ser potencialmente
nocivas à saúde humana. A constatação é de uma pesquisa desenvolvida
pelo Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas
(INCTAA), que está sediado no Instituto de Química (IQ) da Unicamp, em
colaboração com outras instituições. Os pesquisadores identificaram, por
exemplo, a presença de cafeína em todas as 49 amostras coletadas no
cavalete (cano de entrada) de residências espalhadas pelas cinco regiões
do país. “Esse dado é relevante, pois a cafeína funciona como uma
espécie de traçador da eficiência das estações de tratamento de água. Ou
seja, onde a cafeína está presente, há grande probabilidade da presença
de outros contaminantes”, explica o professor Wilson de Figueiredo
Jardim, coordenador do estudo e do Laboratório de Química Ambiental
(LQA) do IQ.
Além de cafeína, os
cientistas também encontraram nas amostras analisadas concentrações
variadas de atrazina (herbicida), fenolftaleína (laxante) e triclosan
(substância presente em produtos de higiene pessoal). No caso da
cafeína, as duas capitais que apresentaram maiores níveis de
contaminação pela substância foram, respectivamente, Porto Alegre e São
Paulo. “A liderança de Porto Alegre nesse ranking foi uma surpresa. Há
uma hipótese para explicar a situação, mas ela evidentemente depende de
confirmação. Segundo essa conjectura, a contaminação estaria ocorrendo
porque os gaúchos são grandes consumidores de erva mate, que, por sua
vez, tem grande concentração de cafeína. Independentemente da origem, a
presença da cafeína na água fornecida aos porto-alegrenses e aos demais
moradores das capitais consideradas no estudo demonstra que os
mananciais estão contaminados por esgoto e que as estações de tratamento
não estão dando conta de remover este e outros compostos do produto que
chega às torneiras das residências. Ou seja, é a prova inequívoca de
que estamos praticando o reúso de água há muito tempo”, explica o
docente da Unicamp.
De acordo com
Wilson Jardim, por não serem legislados, esses contaminantes emergentes –
são emergentes não porque são novos, mas porque estão cada vez mais
presentes no ambiente – não são monitorados com frequência. Ademais, a
ciência ainda não sabe ao certo qual o limite de proteção ao ser humano e
nem que efeitos deletérios eles podem causar ao organismo do homem.
“Entretanto, já dispomos de estudos científicos que apontam que esses
compostos têm causado sérios danos aos organismos aquáticos. Está
comprovado, por exemplo, que eles podem provocar a feminização de
peixes, alteração de desenvolvimento de moluscos e anfíbios e decréscimo
de fertilidade de aves”, elenca o professor da Unicamp.
Quanto
aos humanos, prossegue Wilson Jardim, há indícios de que os
contaminantes não legislados, especialmente hormônios naturais e
sintéticos, como o estrógeno, podem provocar mudanças no sistema
endócrino de homens e mulheres. Uma hipótese, que carece de maiores
estudos, considera que esse tipo de contaminação poderia estar
contribuindo para que a menarca (primeira menstruação) ocorra cada vez
mais cedo entre as meninas. “Estabelecer esse nexo causal é difícil.
Entretanto, temos que estar atentos para problemas dessa ordem. Acredito
que, com o tempo, os contaminantes emergentes também terão que ser
legislados. O trabalho que estamos realizando tem por objetivo
exatamente fornecer subsídios para a formulação de políticas públicas
que possam assegurar à população o fornecimento de uma água potável de
maior qualidade”, diz.
Na opinião do especialista, o melhor caminho a seguir, num primeiro momento, é dar continuidade às pesquisas com vistas ao estabelecimento de normas que concorram para preservar o ambiente. “Esse tema será discutido em congresso científico que será realizado brevemente. A Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental [ABES] tem refletido sobre essa questão e deverá formular uma proposta de limiares de proteção da vida aquática. O passo seguinte, acredito, deverá estender esses parâmetros em relação ao ser humano”, prevê o docente.
Conforme Wilson Jardim, o trabalho de análise da água potável fornecida nas 16 capitais contou com a participação de 25 pesquisadores das seguintes instituições, além da Unicamp: Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Depois
de coletarem as amostras de água nos cavaletes das residências,
seguindo procedimentos previamente estabelecidos, os pesquisadores as
enviaram à Unicamp, onde as análises químicas foram realizadas. Os
métodos analíticos empregados atualmente, destaca Wilson Jardim, são
bastante precisos. Tanto é assim que determinados contaminantes foram
identificados em concentrações equivalentes a nanogramas por litro. Um
dado interessante proporcionado pelo estudo, segundo o professor da
Unicamp, é que as capitais costeiras, como Florianópolis, Vitória e Rio
de Janeiro, apresentaram níveis de contaminação inferiores às demais. A
explicação para isso, cogita o especialista, é o fato de esses
municípios lançarem parte do esgoto diretamente no mar. “Desse modo, os
rios de onde a água é captada para posterior fornecimento à população
apresentam concentrações inferiores de poluentes”, argumenta.
No
caso do Brasil, insiste o docente, a alternativa de curto prazo para
enfrentar esse tipo de problemática é estabelecer novos valores de
referência para a potabilidade da água. Wilson Jardim lembra que já
existem tecnologias disponíveis capazes de remover os contaminantes não
legislados. A própria lei brasileira, segundo ele, estabelece que as
concessionárias de água devem adotar métodos de polimento mais
sofisticados contra substâncias potencialmente nocivas, mesmo que elas
não estejam legisladas. “É claro que um investimento desse tipo pode
encarecer o custo de produção da água potável. Entretanto, temos que
considerar que determinados compostos acarretam custos sociais ainda
maiores, visto que podem trazer sérias sequelas não apenas ao ser humano
exposto, com também aos seus descendentes”, pondera.
Wilson
Jardim assinala que, se olharmos o cenário mundial, perceberemos que
até mesmo os países que tratam 100% do seu esgoto enfrentam problemas de
contaminação da água potável. Isso decorre de uma série de fatores,
entre os quais o crescimento e adensamento populacional e a chegada ao
mercado de novas substâncias. “Estudos indicam que 1.500 substâncias são
lançadas anualmente no mundo. São moléculas novas, às quais não estamos
tendo tempo de estudar. Além disso, o padrão de consumo da sociedade
tem crescido freneticamente. Antes, uma pessoa usava, em média, três
produtos de higiene pessoal antes de sair de casa. Hoje, usa dez. Há
alguns anos, as pessoas passavam filtro solar apenas para ir à praia e à
piscina. Agora, muita gente passa diariamente para ir trabalhar,
inclusive por recomendação médica”, exemplifica.
Continuidade
De
acordo com Wilson Jardim, as pesquisas em torno da qualidade da água
potável das capitais brasileiras terá continuidade. O INCTAA vai se
dedicar ao tema por mais dois anos. Nesse período, os pesquisadores
trabalharão em duas frentes. Primeiramente, as análises realizadas nas
16 primeiras cidades serão repetidas, para verificar se houve alguma
alteração. Em seguida, o trabalho será estendido para as demais
capitais. “Queremos traçar um panorama geral do país por intermédio
desses municípios. Penso que temos prazo suficiente para concluir essa
tarefa”, calcula o docente da Unicamp. Ele informa que os estudos
realizados pelo Laboratório de Química Ambiental (LQA) em conjunto com o
INCTAA já têm contribuído para que as concessionárias considerem
promover melhorias em seus sistemas de tratamento de água.
Em
Campinas, por exemplo, a Sociedade de Abastecimento de Água e
Saneamento S/A (Sanasa) demonstrou interesse em adotar novas tecnologias
que possam reduzir a presença de contaminantes não legislados na água
fornecida aos campineiros. Além da Sanasa, outras concessionárias do
Estado de São Paulo também estão iniciando conversações com Wilson
Jardim com o mesmo propósito.
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