sexta-feira, 2 de agosto de 2013

As muitas faces do sertão

Deficiência hídrica e clima semiárido exigiram respostas adaptativas sofisticadas de espécies da caatinga

RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE | Edição 209 - Julho de 2013
 
Fazenda Dona Soledade, na Paraíba: heterogeneidade de ambientes é uma das marcas da caatinga
Fazenda Dona Soledade, na Paraíba:
heterogeneidade de ambientes é uma
das marcas da caatinga.
© FERNANDO ROSA
Em 1818, durante a expedição austríaca no Brasil – investigação científica que trouxe ao país pesquisadores e artistas para estudar e retratar espécies e paisagens próprias da biodiversidade brasileira –, dois naturalistas, Carl Friedrich von Martius e Johann Baptiste von Spix, se impressionaram com a diversidade vegetal de uma floresta teoricamente incomum para a região, próxima às margens do rio São Francisco, no município de Januária, em Minas Gerais. O fascínio dos naturalistas justificava-se, em grande parte, pelo fato de aquela vegetação estar em uma área própria da caatinga, um ecossistema determinado por um clima predominantemente semiárido, no qual a disponibilidade hídrica é baixa e extremamente variável. Como muitos, é provável que os dois alemães acreditassem que a caatinga caracteriza-se como um ambiente homogêneo, o que não é verdade: “Por lá há uma grande variação de condições ambientais, essenciais para o surgimento e a manutenção de várias espécies bem adaptadas ao clima da região”, destacou o biólogo Bráulio Almeida Santos, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em sua palestra no quinto encontro do Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação, em 20 de junho, em São Paulo.
 
A caatinga, explicou o biólogo, ocupa hoje 11% do território brasileiro, estendendo-se por aproximadamente 845 mil quilômetros quadrados (km²). Está dividida em oito ecorregiões – todas elas distribuídas em paisagens, tipos de solo e vegetações bastante distintos –, nas quais as chuvas podem não atingir os mil milímetros (mm) ao longo do ano. “Em algumas áreas a estiagem pode chegar a 11 meses”, disse. Atualmente, a região enfrenta sua pior seca em 30 anos, o que tem afetado a vida de 27 milhões de pessoas. Somente no estado da Bahia, mais de 214 municípios declararam estado de emergência este ano.
 
A partir da esquerda, os biólogos: Bráulio Almeida Santos, Luciano Paganucci de Queiroz 1 2 e Adrian Garda
A partir da esquerda, os biólogos:
Bráulio Almeida Santos, Luciano Paganucci
de Queiroz e Adrian Garda.
© LÉO RAMOS

 
Esses fatores ambientais têm, ao longo de milhares de anos, exigido respostas adaptativas específicas das plantas locais, o que lhes permite sobreviver num ambiente cada vez mais quente e seco. Uma dessas respostas é o ajuste que determinadas espécies fazem quanto à manutenção de suas folhas. Isso se dá por uma boa razão: quanto menos folhas as plantas têm, menor será a perda  de água durante as estações mais secas. Algumas delas chegam a fazer a fixação de gás carbônico (CO2) à noite, utilizando-o na fotossíntese durante o dia, quando seus estômatos – estruturas nas folhas para troca de água e gases – estão fechados. “Esses são alguns dos mecanismos encontrados por essas espécies para não perderem água pela transpiração, que se dá pelas folhas. Uma estratégia simples, mas que lhes permite reter água para as épocas mais secas”, disse o biólogo Luciano Paganucci de Queiroz, da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, um dos convidados do ciclo de conferências.
 
Segundo ele, esse racionamento é uma das razões que têm contribuído para determinar o tamanho dessas plantas e também de suas folhas. Isso porque esse mecanismo, ao mesmo tempo que lhes garante melhor adaptação ao clima semiárido, restringe o surgimento de árvores de grande porte. “As plantas da caatinga não crescem de modo contínuo por não terem água disponível o suficiente o ano todo”, disse o biólogo.
  
perereca Corythomantis greeningi: adaptações complexas às adversidades do clima
Perereca Corythomantis greeningi: adaptações
complexas às adversidades do clima
© ADRIAN GARDA
Outra resposta adaptativa dessas espécies aos variados ambientes do semiárido é a proteção que desenvolveram para suas folhas, enquanto ainda as têm. Essa proteção se dá por meio de acúleos, projeções pontiagudas que nascem na superfície do caule das plantas, e de tricomas, pequenos “pelos” que contêm substâncias urticantes e que, ao tocar a pele, podem desencadear reações alérgicas. Boa parte das plantas da caatinga, como os cactos, apresenta-se armada com esses escudos naturais. “Trata-se de um mecanismo de defesa bastante interessante contra animais herbívoros”, destacou Queiroz. “Essas espécies mantêm suas folhas por um curto período de tempo durante o ano, logo elas são muito preciosas e por isso precisam ser protegidas.” Segundo ele, as condições às quais essas espécies têm sido submetidas vêm se configurando como um importante filtro ambiental, influenciando o processo evolutivo das espécies desse ecossistema ao longo do tempo.
 
Riqueza de espécies
Apesar das circunstâncias desfavoráveis, a caatinga tem grande variedade de plantas, muitas delas endêmicas. São cerca de 6 mil espécies, distribuídas em 1.333 gêneros, dos quais 18 são próprios da região (endêmicos). Das 87 espécies de cactos da caatinga, 83% são exclusivas desse ecossistema. É o caso do mandacaru (Cereus jamacaru) e do xique-xique (Pilosocereus gounellei), espécies ameaçadas, “pois são retiradas ainda jovens de seu ambiente e vendidas como souvenir em restaurantes de beira de estrada”, alertou Queiroz.

Também a família das leguminosas, a mais diversa da caatinga, engloba várias das espécies exclusivas do semiárido, como a mucunã (Diclea grandiflora) e a jurema-preta (Mimosa tenuiflora). Muitas delas desempenham importantes funções ecológicas. Devido à associação com algumas bactérias, essas plantas ajudam na fixação de nitrogênio pelo solo, tornando-o mais nutritivo. Mas mesmo com os avanços na identificação de novas espécies, como a Prosopanche caatingicola, planta parasita catalogada em 2012, a falta de dados em relação à biodiversidade florística desse ecossistema ainda é grande.
 
Esse desconhecimento também se estende à fauna da caatinga, sobretudo em relação aos invertebrados, enfatizou o biólogo Adrian Garda, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), um dos palestrantes presentes. Segundo ele, por muito tempo se acreditou que a caatinga era um ecossistema descaracterizado, com baixos índices de endemismo e diversidade de espécies. “Pensava-se que a caatinga era uma subamostra de outros ecossistemas”, disse. Sabe-se hoje que ela é a região semiárida mais diversa do mundo.
 
Diversidade ameaçada
Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a região do semiárido possui 591 espécies de aves, 241 de peixes e 178 de mamíferos. Estima-se que 41% das espécies da caatinga ainda permaneçam desconhecidas, enquanto 80% ainda são pouco estudadas. “Há uma carência de dados em relação à diversidade de animais desse ecossistema”, ressaltou Garda. Mas os índices de endemismo registrados por lá sugerem que sua fauna tenha sido submetida a um processo evolutivo local independente, com muitas espécies adaptadas a este domínio.
 
Por exemplo, a Corythomantis greeningi, perereca típica da região, nas épocas secas hiberna por meses entre pequenas frestas de rochas seladas por seu crânio altamente modificado, se protegendo de predadores e armazenando água. Já o Scriptosaura catimbau, lagarto adaptado a regiões de solos arenosos, “literalmente se enterra e ‘nada’ por debaixo da areia”, comentou. Outras espécies, como a rã Pleurodema diplolister, chegam a se enterrar a mais de 1,5 metro na procura de água em épocas de seca. “Mas ainda precisamos compreender melhor o que pretendemos preservar”, completou Garda.
 
Serpente da espécie Epicrates assisi...
Serpente da espécie Epicrates assisi
© ADRIAN GARDA
De acordo com a Secretaria de Biodiversidade e Florestas do MMA, de 2002 a 2008 a área desmatada no semiárido foi de 15 mil km² – pouco mais de 2 mil km² por ano. Restam hoje apenas 54% da vegetação original da caatinga. Segundo Santos, das 364 unidades de conservação (UCs) cadastradas no MMA, 113 são destinadas à proteção e conservação do ecossistema, sendo que elas cobrem apenas 7,5% de seus 845 mil km².
 
Para ele, a principal causa de desmatamento na região é a produção de energia. Abatida, a mata nativa vira lenha e carvão para siderúrgicas de Minas Gerais e Espírito Santo, ou de indústrias de gesso e cerâmica instaladas no próprio semiárido. Na sua avaliação, as consequências do uso inapropriado dos recursos naturais da região é a perda de hábitats e a fragmentação de ecossistemas. “Não se trata de deixar de utilizar os recursos naturais da caatinga, mas sim de identificar até que ponto podemos usá-los sem comprometê-la.”
 
Santos lembrou que a criação desregulada de cabras e ovelhas também tem contribuído para a degradação da vegetação da caatinga. Em torno de 17 milhões de cabras e ovelhas consomem diariamente a vegetação local. “Muitas vezes a cerca necessária para manter o rebanho em uma área custa mais do que a propriedade. Assim, muitos produtores deixam seus animais soltos, consumindo a vegetação indiscriminadamente”. Para ele, o uso mal planejado dos recursos naturais já está levando à desertificação da caatinga.
  
... comum em regiões como a das Cabaceiras, na Paraíba
… comum em regiões como a das Cabaceiras,
na Paraíba. © FERNANDO ROSA
“É preciso conservar a vegetação remanescente, expandindo a rede de áreas protegidas”, disse Santos. “É importante promover o manejo adequado das áreas que sofrem influência da atividade humana e educar todos que vivem ou fazem uso dos recursos naturais da região, resgatando o sentimento de pertencimento à caatinga.” Para isso, concluiu, é fundamental ampliar o apoio à pesquisa e ao ensino, além da fiscalização, garantindo a preservação da diversidade biológica da caatinga. Diversidade que os naturalistas alemães há muito já haviam constatado. “Julgamo-nos aqui transportados a um país inteiramente diverso. Em vez de matas secas, desfolhadas ou de campos do alto sertão, vimo-nos de todos os lados cercados de matas virentes, que orlavam extensas lagoas piscosas”, escreveram em Viagem pelo Brasil, obra em que relatam suas excursões pelo país entre 1817 e 1820.
 
O Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação é uma iniciativa do Programa Biota-FAPESP, em parceria com a revista Pesquisa FAPESP, voltada à discussão dos desafios ligados à conservação dos principais ecossistemas brasileiros: pampa, pantanal, cerrado, caatinga, mata atlântica e Amazônia, além dos ambientes marinhos e costeiros e a biodiversidade em ambientes antrópicos – urbanos e rurais (ver programação ao lado). As palestras pretendem, até novembro, apresentar o conhecimento gerado por pesquisadores de todo o Brasil, visando a contribuir com a melhoria da educação científica e ambiental de professores e alunos do ensino médio do país. 



 

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