Deficiência hídrica e clima semiárido exigiram respostas adaptativas sofisticadas de espécies da caatinga
RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE |
Edição 209 - Julho de 2013
Fazenda Dona Soledade, na Paraíba: heterogeneidade de ambientes é uma das marcas da caatinga. © FERNANDO ROSA |
Em 1818, durante a expedição austríaca no Brasil – investigação
científica que trouxe ao país pesquisadores e artistas para estudar e
retratar espécies e paisagens próprias da biodiversidade brasileira –,
dois naturalistas, Carl Friedrich von Martius e Johann Baptiste von
Spix, se impressionaram com a diversidade vegetal de uma floresta
teoricamente incomum para a região, próxima às margens do rio São
Francisco, no município de Januária, em Minas Gerais. O fascínio dos
naturalistas justificava-se, em grande parte, pelo fato de aquela
vegetação estar em uma área própria da caatinga, um ecossistema
determinado por um clima predominantemente semiárido, no qual a
disponibilidade hídrica é baixa e extremamente variável. Como muitos, é
provável que os dois alemães acreditassem que a caatinga caracteriza-se
como um ambiente homogêneo, o que não é verdade: “Por lá há uma grande
variação de condições ambientais, essenciais para o surgimento e a
manutenção de várias espécies bem adaptadas ao clima da região”,
destacou o biólogo Bráulio Almeida Santos, da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), em sua palestra no quinto encontro do Ciclo de
Conferências Biota-FAPESP Educação, em 20 de junho, em São Paulo.
A caatinga, explicou o biólogo, ocupa hoje 11% do território
brasileiro, estendendo-se por aproximadamente 845 mil quilômetros
quadrados (km²). Está dividida em oito ecorregiões – todas
elas distribuídas em paisagens, tipos de solo e vegetações bastante
distintos –, nas quais as chuvas podem não atingir os mil milímetros
(mm) ao longo do ano. “Em algumas áreas a estiagem pode chegar a 11
meses”, disse. Atualmente, a região enfrenta sua pior seca em 30 anos, o
que tem afetado a vida de 27 milhões de pessoas. Somente no estado da
Bahia, mais de 214 municípios declararam estado de emergência este ano.
A partir da esquerda, os biólogos: Bráulio Almeida Santos, Luciano Paganucci de Queiroz e Adrian Garda. © LÉO RAMOS |
Esses fatores ambientais têm, ao longo de milhares de anos, exigido
respostas adaptativas específicas das plantas locais, o que lhes permite
sobreviver num ambiente cada vez mais quente e seco. Uma dessas
respostas é o ajuste que determinadas espécies fazem quanto à manutenção
de suas folhas. Isso se dá por uma boa razão: quanto menos folhas as
plantas têm, menor será a perda de água durante as estações mais secas.
Algumas delas chegam a fazer a fixação de gás carbônico (CO2)
à noite, utilizando-o na fotossíntese durante o dia, quando seus
estômatos – estruturas nas folhas para troca de água e gases – estão
fechados. “Esses são alguns dos mecanismos encontrados por essas
espécies para não perderem água pela transpiração, que se dá pelas
folhas. Uma estratégia simples, mas que lhes permite reter água para as
épocas mais secas”, disse o biólogo Luciano Paganucci de Queiroz, da
Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, um dos convidados
do ciclo de conferências.
Segundo ele, esse racionamento é uma das razões que têm contribuído
para determinar o tamanho dessas plantas e também de suas folhas. Isso
porque esse mecanismo, ao mesmo tempo que lhes garante melhor adaptação
ao clima semiárido, restringe o surgimento de árvores de grande porte.
“As plantas da caatinga não crescem de modo contínuo por não terem água
disponível o suficiente o ano todo”, disse o biólogo.
Perereca Corythomantis greeningi: adaptações complexas às adversidades do clima © ADRIAN GARDA |
Outra resposta adaptativa dessas espécies aos variados ambientes do
semiárido é a proteção que desenvolveram para suas folhas, enquanto
ainda as têm. Essa proteção se dá por meio de acúleos, projeções
pontiagudas que nascem na superfície do caule das plantas, e de
tricomas, pequenos “pelos” que contêm substâncias urticantes e que, ao
tocar a pele, podem desencadear reações alérgicas. Boa parte das plantas
da caatinga, como os cactos, apresenta-se armada com esses escudos
naturais. “Trata-se de um mecanismo de defesa bastante interessante
contra animais herbívoros”, destacou Queiroz. “Essas espécies mantêm
suas folhas por um curto período de tempo durante o ano, logo elas são
muito preciosas e por isso precisam ser protegidas.” Segundo ele, as
condições às quais essas espécies têm sido submetidas vêm se
configurando como um importante filtro ambiental, influenciando o
processo evolutivo das espécies desse ecossistema ao longo do tempo.
Riqueza de espécies
Apesar das circunstâncias desfavoráveis, a caatinga tem grande variedade de plantas, muitas delas endêmicas. São cerca de 6 mil espécies, distribuídas em 1.333 gêneros, dos quais 18 são próprios da região (endêmicos). Das 87 espécies de cactos da caatinga, 83% são exclusivas desse ecossistema. É o caso do mandacaru (Cereus jamacaru) e do xique-xique (Pilosocereus gounellei), espécies ameaçadas, “pois são retiradas ainda jovens de seu ambiente e vendidas como souvenir em restaurantes de beira de estrada”, alertou Queiroz.
Apesar das circunstâncias desfavoráveis, a caatinga tem grande variedade de plantas, muitas delas endêmicas. São cerca de 6 mil espécies, distribuídas em 1.333 gêneros, dos quais 18 são próprios da região (endêmicos). Das 87 espécies de cactos da caatinga, 83% são exclusivas desse ecossistema. É o caso do mandacaru (Cereus jamacaru) e do xique-xique (Pilosocereus gounellei), espécies ameaçadas, “pois são retiradas ainda jovens de seu ambiente e vendidas como souvenir em restaurantes de beira de estrada”, alertou Queiroz.
Também
a família das leguminosas, a mais diversa da caatinga, engloba várias
das espécies exclusivas do semiárido, como a mucunã (Diclea grandiflora) e a jurema-preta (Mimosa tenuiflora).
Muitas delas desempenham importantes funções ecológicas. Devido à
associação com algumas bactérias, essas plantas ajudam na fixação de
nitrogênio pelo solo, tornando-o mais nutritivo. Mas mesmo com os
avanços na identificação de novas espécies, como a Prosopanche caatingicola, planta parasita catalogada em 2012, a falta de dados em relação à biodiversidade florística desse ecossistema ainda é grande.
Esse desconhecimento também se estende à fauna da caatinga, sobretudo
em relação aos invertebrados, enfatizou o biólogo Adrian Garda, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), um dos palestrantes
presentes. Segundo ele, por muito tempo se acreditou que a caatinga era
um ecossistema descaracterizado, com baixos índices de endemismo e
diversidade de espécies. “Pensava-se que a caatinga era uma subamostra
de outros ecossistemas”, disse. Sabe-se hoje que ela é a região
semiárida mais diversa do mundo.
Diversidade ameaçada
Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a região do semiárido possui 591 espécies de aves, 241 de peixes e 178 de mamíferos. Estima-se que 41% das espécies da caatinga ainda permaneçam desconhecidas, enquanto 80% ainda são pouco estudadas. “Há uma carência de dados em relação à diversidade de animais desse ecossistema”, ressaltou Garda. Mas os índices de endemismo registrados por lá sugerem que sua fauna tenha sido submetida a um processo evolutivo local independente, com muitas espécies adaptadas a este domínio.
Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a região do semiárido possui 591 espécies de aves, 241 de peixes e 178 de mamíferos. Estima-se que 41% das espécies da caatinga ainda permaneçam desconhecidas, enquanto 80% ainda são pouco estudadas. “Há uma carência de dados em relação à diversidade de animais desse ecossistema”, ressaltou Garda. Mas os índices de endemismo registrados por lá sugerem que sua fauna tenha sido submetida a um processo evolutivo local independente, com muitas espécies adaptadas a este domínio.
Por exemplo, a Corythomantis greeningi, perereca típica da
região, nas épocas secas hiberna por meses entre pequenas frestas de
rochas seladas por seu crânio altamente modificado, se protegendo de
predadores e armazenando água. Já o Scriptosaura catimbau,
lagarto adaptado a regiões de solos arenosos, “literalmente se enterra e
‘nada’ por debaixo da areia”, comentou. Outras espécies, como a rã Pleurodema diplolister,
chegam a se enterrar a mais de 1,5 metro na procura de água em épocas
de seca. “Mas ainda precisamos compreender melhor o que pretendemos
preservar”, completou Garda.
Serpente da espécie Epicrates assisi… © ADRIAN GARDA |
De acordo com a Secretaria de Biodiversidade e Florestas do MMA, de
2002 a 2008 a área desmatada no semiárido foi de 15 mil km² – pouco mais
de 2 mil km² por ano. Restam hoje apenas 54% da vegetação original da
caatinga. Segundo Santos, das 364 unidades de conservação (UCs)
cadastradas no MMA, 113 são destinadas à proteção e conservação do
ecossistema, sendo que elas cobrem apenas 7,5% de seus 845 mil km².
Para ele, a principal causa de desmatamento na região é a produção de
energia. Abatida, a mata nativa vira lenha e carvão para siderúrgicas
de Minas Gerais e Espírito Santo, ou de indústrias de gesso e cerâmica
instaladas no próprio semiárido. Na sua avaliação, as consequências do
uso inapropriado dos recursos naturais da região é a perda de hábitats e
a fragmentação de ecossistemas. “Não se trata de deixar de utilizar os
recursos naturais da caatinga, mas sim de identificar até que ponto
podemos usá-los sem comprometê-la.”
Santos lembrou que a criação desregulada de cabras e ovelhas também
tem contribuído para a degradação da vegetação da caatinga. Em torno de
17 milhões de cabras e ovelhas consomem diariamente a vegetação local.
“Muitas vezes a cerca necessária para manter o rebanho em uma área custa
mais do que a propriedade. Assim, muitos produtores deixam seus animais
soltos, consumindo a vegetação indiscriminadamente”. Para ele, o uso
mal planejado dos recursos naturais já está levando à desertificação da
caatinga.
… comum em regiões como a das Cabaceiras, na Paraíba. © FERNANDO ROSA |
“É preciso conservar a vegetação remanescente, expandindo a rede de
áreas protegidas”, disse Santos. “É importante promover o manejo
adequado das áreas que sofrem influência da atividade humana e educar
todos que vivem ou fazem uso dos recursos naturais da região, resgatando
o sentimento de pertencimento à caatinga.” Para isso, concluiu, é
fundamental ampliar o apoio à pesquisa e ao ensino, além da
fiscalização, garantindo a preservação da diversidade biológica da
caatinga. Diversidade que os naturalistas alemães há muito já haviam
constatado. “Julgamo-nos aqui transportados a um país inteiramente
diverso. Em vez de matas secas, desfolhadas ou de campos do alto sertão,
vimo-nos de todos os lados cercados de matas virentes, que orlavam
extensas lagoas piscosas”, escreveram em Viagem pelo Brasil, obra em que relatam suas excursões pelo país entre 1817 e 1820.
O Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação é uma iniciativa do Programa Biota-FAPESP, em parceria com a revista Pesquisa FAPESP,
voltada à discussão dos desafios ligados à conservação dos principais
ecossistemas brasileiros: pampa, pantanal, cerrado, caatinga, mata
atlântica e Amazônia, além dos ambientes marinhos e costeiros e a
biodiversidade em ambientes antrópicos – urbanos e rurais (ver programação ao lado).
As palestras pretendem, até novembro, apresentar o conhecimento gerado
por pesquisadores de todo o Brasil, visando a contribuir com a melhoria
da educação científica e ambiental de professores e alunos do ensino
médio do país.
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