minha cidade ISSN 1982-9922
035.01 João Pessoa PB Brasilano 03, jun 2003
No finalzinho do ano
passado, fui questionada sobre as minhas perspectivas para a
cidade em 2003: “o que João Pessoa precisa para melhorar?”. A pergunta
me fez lembrar a data importante que o ano 2002 marcou para a
vida urbana de João Pessoa. Em 30 dezembro, nós podíamos ter
comemorado dez anos de vigência da Lei Complementar Nº 3.
O ano de 1992 trouxe-nos uma importante
conquista. Àquela data, nós, que acompanhamos a política
urbana de João Pessoa, festejávamos a chegada de um instrumento
de planejamento e gestão urbana compatível com os valores que
vislumbrávamos para a cidade - para o controle de preservação e
conquista de qualidade de vida para os habitantes: a garantia
legal de um crescimento urbano sem a descaracterização de nossa
ambiência paisagística e com direitos disciplinados – de uso
do solo urbano – iguais para todos: o nosso novo Plano Diretor.
Há dez anos, a cidade estreava
importantes e fundamentais instrumentos de gestão urbana que o
país somente ganhou no ano anterior, precisamente em 10 de
julho, com a assinatura da Lei 10.257 - Estatuto da Cidade.
Baseado em parâmetros sobrevividos da
iniciativa do planejamento urbano da gestão Erundina em São
Paulo, que naufragou na maior Câmara de Vereadores do País, O
Plano Diretor da Cidade de João Pessoa apostava na valorização
de um conceito reestruturado pela Constituição Federal de 1988 – de
“controle social'' – para a construção de uma via mais sólida
para praticar o desenvolvimento social, tão assegurado em
textos oficiais, através da instituição de fóruns democráticos
de gestão do patrimônio público e de fortalecimento da cidadania
brasileira.
Dentre os vários recursos de gestão
urbana criados pelo atual Plano Diretor, a maioria pertinente
ao Estatuto da Cidade, o mais importante, creio eu, é o Sistema
de Planejamento. Com ele, se pode conceber uma nova mentalidade
administrativa, que ainda hoje, o município está longe de assegurar.
Ao declarar-se, em seus objetivos, como
“instrumento estratégico para orientar o desempenho dos agentes
públicos e privados na produção e gestão do espaço urbano, o
Plano Diretor almeja “...assegurar o desenvolvimento integrado
das funções sociais da cidade, garantir o uso socialmente justo da
propriedade e do solo urbano e preservar, em todo o seu
território, os bens culturais, o meio ambiente e promover o bem
estar da população” (pág. 1).
Hoje, ainda novo para a administração
pública, é o que deixa ver (ou melhor não ver) o exemplo
patente do único instrumento legalmente em vigor, ao menos
dentro daquela concepção, o Conselho de Desenvolvimento
Urbano. Na prática, contudo, o CDU tem servido para corroborar
a ilusão, nem tão pública, de uma gestão urbana participativa.
Hoje, completados 10 anos de um
Plano, que já se previa necessitando, em sua primeira década de
vida, de revisão, nós poderíamos ser, se tivéssemos tido
capacidade civil para isso, um exemplo em gestão urbana para todo
o País.
Há dois anos, membros do CDU relatam que
há uma comissão revisando o Plano Diretor. Como? Parece que não
se pode saber... O que se sabe é que na prática as normas
urbanas de João Pessoa vêm sendo revisadas a toque de caixa, em
céleres reuniões privadas no gabinete do secretário, com a
convergência de alguns poucos iluminados para decidir sobre o
futuro da cidade da gente. Decisões editadas por meio de decretos “que
o chefe do poder executivo expede, com força de lei, por estar
absorvendo, anormalmente, as funções próprias do legislativo,
eventualmente supresso.” – mas isto entre aspas quem diz é
Aurélio.
A Secretaria de Planejamento do Município
pode até estar bem intencionada. Se acreditamos nisso,
pensemos que pode haver algum novo conceito de 'planejamento
urbano' na pauta da Prefeitura Municipal de João Pessoa. Qual será? Em
que sentido nos assegura que o “sistema de planejamento
municipal tem suas atribuições comprometidas com a continuidade dos estudos e diagnósticos das peculiaridades locais, as quais devem
orientar permanentemente as revisões do Plano Diretor de forma
a torná-lo sempre atual, participativo e democrático (...), onde a
comunidade é estimulada a participar do
planejamento da cidade e da fiscalização dos atos executivos no
cumprimento das diretrizes do Plano Diretor.” (Págs. 4 e 5)?
Enquanto isto, a descaracterização urbana em João Pessoa se faz acachapante.
Este tipo de falta de controle relativa
ao patrimônio urbano público de João Pessoa se alarga por toda a
sua extensão: perde-se na qualidade do patrimônio natural -
nossos rios todos mal cuidados, invadidos, assoreados, transformados
em patrimônio particular ou em caos total, como no caso do lixão
do Roger; a nossa orla se perdendo em seu maior valor, que é o
controle do gabarito de altura das construções, além de ter
parte prejudicada em sua balneabilidade, também por falta de
controle administrativo e falta de investimento municipal em
educação pública; a barreira do Cabo Branco destinada gloriosamente
a desaparecer, descaracterizando um marco identitário da cidade; a
Lagoa, coitada, servindo somente de equivocado marketing
político; calçadas invadidas por veículos, comércios e serviços e
afugentando cada vez mais aquele a quem deve servir – o
pedestre –, e nossas praças resolvendo o grande problema viário
e de falta de estacionamento, quando não aparecem loteadas, e
as que permanecem sem qualquer investimento urbanístico em
conservação; o grande rolo em que se encontra o tráfego de veículos,
sobretudo no centro da cidade; novos empreendimentos
gerando demandas incontroláveis de tráfego; e finalmente o
nosso centro histórico, cujas querelas político-partidárias
atropelam o interesse público e o deixam morrendo à míngua,
desestimulando investimentos corajosos na economia do centro
histórico – quantos empreendimentos já abriram e tiveram que fechar por falta de sustentabilidade econômica, após as propaladas políticas estadual e municipal de valorização do centro histórico? Ufa!
Mas não é somente da responsabilidade da
administração municipal que João Pessoa está perdendo-se de si
mesma; parte considerável desta responsabilidade infelizmente
tem raiz na questão estrutural brasileira chamada falta de
educação. Falta de educação para usar o patrimônio público, que é
a cidade; aquela regrinha básica do direito civil que diz: "o meu
direito termina onde começa o do outro". E o que a gente tem visto
é toda sorte de coisas acontecendo: desrespeito total às
regras urbanas pelo mau uso dos espaços público e privado por
falta de ação fiscalizadora municipal: vizinhos que não
respeitam o espaço do vizinho, arquitetos e engenheiros que não
cumprem a sua função de esclarecer o direito social do uso do
solo urbano e até ajudam a prejudicar a qualidade de nossa ambiência;
construtores arbitrários que se garantem com espaços públicos ou
que lesam consumidores; e a sociedade sem saber, grande parte
das vezes, que está ‘desconstruindo’ a sua própria identidade
urbana. E a cidade segue perdendo, imperceptivelmente aos olhos
leigos, a sua ainda resistente qualidade de vida urbana e
fundamentalmente a sua identidade paisagística - aquilo que faz
a gente reconhecer-se em seu lugar: "Ah! Isto aqui é minha
cidade".
Infelizmente, de onde nós poderíamos ter
referência, que são os poderes públicos constituídos, é de
onde, às vezes, podemos tomar os piores exemplos - e isto não somente
em relação ao Executivo, mas também aos Legislativo e Judiciário,
sobre os quais a sociedade não tem o direito de refletir,
sobre pena de caracterizar-se o desacato à autoridade e de
ficar-se marcado para sempre.
Respondendo finalmente a pergunta que me fizeram, a cidade precisa urgentemente de exemplos.
É do que mais precisamos: de bons exemplos - e de construir
exemplos! Que este retrato do Brasil se amareleça e 2003 seja um marco
para a história da construção de uma nova mentalidade
administrativa em cada uma das cidades do país, que nos leve a
não lamentar décadas perdidas, mas a cantar sem dor: “Isto
aqui, ôô, é um pouquinho de Brasil!
Rossana Honorato é arquitetura
urbanista, mestre em Ciências Sociais e professora do Curso de
Arquitetura e Urbanismo do UNIPÊ. Presidente do IAB-PB na
gestão 1993-1995, integra o Conselho Superior do IAB e o
Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Estado
da Paraíba. É Coordenadora da CEARQ-CREA/PB. É autora dos
livros Se essa cidade fosse minha e A cidade entrevista (1999), sobre
a cidade de João Pessoa.
Veja também: A questão do gabarito na orla marítima de João Pessoa (bairros de Manaíra, Tambaú e do Cabo Branco)
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