domingo, 11 de dezembro de 2011

A década perdida do planejamento urbano em João Pessoa "Isso aqui, ôô. É um pouquinho de Brasil, ai-ai..."


 
No finalzinho do ano passado, fui questionada sobre as minhas perspectivas para a cidade em 2003: “o que João Pessoa precisa para melhorar?”. A pergunta me fez lembrar a data importante que o ano 2002 marcou para a vida urbana de João Pessoa. Em 30 dezembro, nós podíamos ter comemorado dez anos de vigência da Lei Complementar Nº 3. 

O ano de 1992 trouxe-nos uma importante conquista.  Àquela data, nós, que acompanhamos a política urbana de João Pessoa, festejávamos a chegada de um instrumento de planejamento e gestão urbana compatível com os valores que vislumbrávamos para a cidade - para o controle de preservação e conquista de qualidade de vida para os habitantes: a garantia legal de um crescimento urbano sem a descaracterização de nossa ambiência paisagística e com direitos disciplinados – de uso do solo urbano – iguais para todos: o nosso novo Plano Diretor.

Há dez anos, a cidade estreava importantes e fundamentais instrumentos de gestão urbana que o país somente ganhou no ano anterior, precisamente em 10 de julho, com a assinatura da Lei 10.257 - Estatuto da Cidade.  

Baseado em parâmetros sobrevividos da iniciativa do planejamento urbano da gestão Erundina em São Paulo, que naufragou na maior Câmara de Vereadores do País, O Plano Diretor da Cidade de João Pessoa apostava na valorização de um conceito reestruturado pela Constituição Federal de 1988 – de “controle social'' – para a construção de uma via mais sólida para praticar o desenvolvimento social, tão assegurado em textos oficiais, através da instituição de fóruns democráticos de gestão do patrimônio público e de fortalecimento da cidadania brasileira.

Dentre os vários recursos de gestão urbana criados pelo atual Plano Diretor, a maioria pertinente ao Estatuto da Cidade, o mais importante, creio eu, é o Sistema de Planejamento. Com ele, se pode conceber uma nova mentalidade administrativa, que ainda hoje, o município está longe de assegurar.

Ao declarar-se, em seus objetivos, como “instrumento estratégico para orientar o desempenho dos agentes públicos e privados na produção e gestão do espaço urbano, o Plano Diretor almeja “...assegurar o desenvolvimento integrado das funções sociais da cidade, garantir o uso socialmente justo da propriedade e do solo urbano e preservar, em todo o seu território, os bens culturais, o meio ambiente e promover o bem estar da população” (pág. 1).

Hoje, ainda novo para a administração pública, é o que deixa ver (ou melhor não ver) o exemplo patente do único instrumento legalmente em  vigor, ao menos dentro daquela concepção, o Conselho de Desenvolvimento Urbano.  Na prática, contudo, o CDU tem servido para corroborar a ilusão, nem tão pública, de uma gestão urbana participativa. 

Hoje, completados 10 anos de um Plano, que já se previa necessitando, em sua primeira década de vida, de revisão, nós poderíamos ser, se tivéssemos tido capacidade civil para isso, um exemplo em gestão urbana para todo o País. 

Há dois anos, membros do CDU relatam que há uma comissão revisando o Plano Diretor. Como? Parece que não se pode saber... O que se sabe é que na prática as normas urbanas de João Pessoa vêm sendo revisadas a toque de caixa, em céleres reuniões privadas no gabinete do secretário, com a convergência de alguns poucos iluminados para decidir  sobre o futuro da cidade da gente. Decisões editadas por meio de decretos “que o chefe do poder executivo expede, com força de lei, por estar absorvendo, anormalmente, as funções próprias do legislativo, eventualmente supresso.” – mas isto entre aspas quem diz é Aurélio.
A Secretaria de Planejamento do Município pode até estar bem intencionada. Se acreditamos nisso, pensemos que pode haver algum novo conceito de 'planejamento urbano' na pauta da Prefeitura Municipal de João Pessoa. Qual será? Em que sentido nos assegura que o “sistema de planejamento municipal tem suas atribuições comprometidas com a continuidade dos estudos e diagnósticos das peculiaridades locais, as quais devem orientar permanentemente as revisões do Plano Diretor de forma a torná-lo sempre atual, participativo e democrático (...), onde a comunidade é estimulada a participar do planejamento da cidade e da fiscalização dos atos executivos no cumprimento das diretrizes do Plano Diretor.” (Págs. 4 e 5)?
Enquanto isto, a descaracterização urbana em João Pessoa se faz acachapante.

Este tipo de falta de controle relativa ao patrimônio urbano público de João Pessoa se alarga por toda a sua extensão: perde-se na qualidade do patrimônio natural - nossos rios todos mal cuidados, invadidos, assoreados, transformados em patrimônio particular ou em caos total, como no caso do lixão do Roger; a nossa orla se perdendo em seu maior valor, que é o controle do gabarito de altura das construções, além de ter parte prejudicada em sua balneabilidade, também por falta de controle administrativo e falta de investimento municipal em educação pública; a barreira do Cabo Branco destinada gloriosamente a desaparecer, descaracterizando um marco identitário da cidade; a Lagoa, coitada, servindo somente de equivocado marketing político; calçadas invadidas por veículos, comércios e serviços e afugentando cada vez mais aquele a quem deve servir – o pedestre –, e nossas praças resolvendo o grande problema viário e de falta de estacionamento, quando não aparecem loteadas, e as que permanecem sem qualquer investimento urbanístico em conservação; o grande rolo em que se encontra o tráfego de veículos, sobretudo no centro da cidade; novos empreendimentos gerando demandas incontroláveis de tráfego; e finalmente o nosso centro histórico, cujas querelas político-partidárias atropelam o interesse público e o deixam morrendo à míngua, desestimulando investimentos corajosos na economia do centro histórico – quantos empreendimentos já abriram e tiveram que fechar por falta de sustentabilidade econômica, após as propaladas políticas estadual e municipal de valorização do centro histórico? Ufa!

Mas não é somente da responsabilidade da administração municipal que João Pessoa está perdendo-se de si mesma; parte considerável desta responsabilidade infelizmente tem raiz na questão estrutural brasileira chamada falta de educação. Falta de educação para usar o patrimônio público, que é a cidade; aquela regrinha básica do direito civil que diz: "o meu direito termina onde começa o do outro". E o que a gente tem visto é toda sorte de coisas acontecendo: desrespeito total às regras urbanas pelo mau uso dos espaços público e privado por falta de ação fiscalizadora municipal: vizinhos que não respeitam o espaço do vizinho, arquitetos e engenheiros que não cumprem a sua função de esclarecer o direito social do uso do solo urbano e até ajudam a prejudicar a qualidade de nossa ambiência; construtores arbitrários que se garantem com espaços públicos ou que lesam consumidores; e a sociedade sem saber, grande parte das vezes, que está ‘desconstruindo’ a sua própria identidade urbana. E a cidade segue perdendo, imperceptivelmente aos olhos leigos, a sua ainda resistente qualidade de vida urbana e fundamentalmente a sua identidade paisagística - aquilo que faz a gente reconhecer-se em seu lugar: "Ah! Isto aqui é minha cidade".

Infelizmente, de onde nós poderíamos ter referência, que são os poderes públicos constituídos, é de onde, às vezes, podemos tomar os piores exemplos - e isto não somente em relação ao Executivo, mas também aos Legislativo e Judiciário, sobre os quais a sociedade não tem o direito de refletir, sobre pena de caracterizar-se o desacato à autoridade e de ficar-se marcado para sempre.

Respondendo finalmente a pergunta que me fizeram, a cidade precisa urgentemente de exemplos. É do que mais precisamos: de bons exemplos - e de construir exemplos! Que este retrato do Brasil se amareleça e 2003 seja um marco para a história da construção de uma nova mentalidade administrativa em cada uma das cidades do país, que nos leve a não lamentar décadas perdidas, mas a cantar sem dor: “Isto aqui, ôô, é um pouquinho de Brasil!

sobre a autora
Rossana Honorato é arquitetura urbanista, mestre em Ciências Sociais e professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo do UNIPÊ. Presidente do IAB-PB na gestão 1993-1995, integra o Conselho Superior do IAB e o Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Estado da Paraíba. É Coordenadora da CEARQ-CREA/PB. É autora dos livros Se essa cidade fosse minha e A cidade entrevista (1999), sobre a cidade de João Pessoa.


Veja também: A questão do gabarito na orla marítima de João Pessoa (bairros de Manaíra, Tambaú e do Cabo Branco)


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