Poluentes
Pesquisadores analisam a água de cidades nas
cinco regiões do país e encontram um poderoso indicador dos chamados
poluentes emergentes
Guilherme Rosa
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Represa Billings: a água fornecida na cidade de São Paulo
teve a maior porcentagem de cafeína, indício de contaminação por esgoto.
(PROAM/Divulgação)
A água que chega às casas de moradores de 15 capitais brasileiras está
contaminada com um poderoso indicador da presença de dejetos
industriais, agrotóxicos e remédios: a cafeína. É o que revela uma
pesquisa do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas
Avançadas (INCTAA), sediado no Instituto de Química da Unicamp, feita
com amostras recolhidas diretamente da rede de distribuição — a mesma
água que sai de nossas torneiras e é considerada potável pela legislação
atual.
A cafeína é uma das substâncias mais consumidas no mundo e presença
constante no esgoto humano. Não faz – necessariamente – mal à saúde,
mas, por semelhanças químicas, sua presença na água sinaliza a
existência de outros contaminantes, em particular os chamados poluentes emergentes, resíduos cada
vez mais presentes nas águas do mundo e que só agora começam a
despertar a atenção dos órgãos de saneamento. Entre essas substâncias,
está a fenolftaleína, que tem seu uso como laxante proibido pela Anvisa,
e o triclosan, um antisséptico usado em medicamentos, cremes dentais e
desodorantes. Sua proliferação em rios e reservatórios é resultado do
crescimento das cidades e de novos processos industriais.
"Nós estamos bebendo água que tem resíduos de indústrias farmacêuticas,
polímeros e petróleo", resume Valdinete Lins da Silva, coordenadora do
Laboratório de Engenharia Ambiental da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) e participante do estudo. Além da Unicamp e da UFPE,
também colaboraram pesquisadores das universidades federais do Paraná
(UFPR) e Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Estadual do Norte
Fluminense (UENF).
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A cafeína apareceu em todas as amostras analisadas nas regiões Sul e
Norte. No Sudeste, 94% das amostras tinham a substância. O Centro-Oeste
apresentou 67% de contaminação, e o Nordeste, 42%. A capital que
apresentou maior concentração foi São Paulo. A única cidade em que não
se detectou a presença de cafeína na água foi Fortaleza.
"Nos níveis detectados, a cafeína não faz mal ao ser humano. No entanto, ela indica a presença de outros compostos emergentes que,
consumidos ao longo de 40, 60 anos, podem ter efeito crônico no
organismo", diz Marco Grassi, professor de química ambiental da UFPR, e
integrante da equipe.
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Um exemplo desses compostos que já foi estudado é a atrasina, um
herbicida bastante usado nas lavouras brasileiras. Ela já é controlada
pelo Ministério da Saúde, mas foi encontrada na água analisada pelos
pesquisadores do INCTAA. Em, 2010 a revista Proceedings of the National
Academy of Sciences publicou um estudo mostrando que a exposição à
substância podia levar sapos machos a trocar de sexo. Estudos anteriores
já haviam demonstrado que a substância podia aumentar a quantidade de
indivíduos hermafroditas entre pássaros, peixes e ratos.
Com humanos, as pesquisas ainda estão engatinhando. Os cientistas ainda
não podem bater o martelo sobre qual a quantidade segura de cada uma
dessas substâncias na água. "Não se conhecem seus efeitos na saúde
humana e nem sua dinâmica no ambiente. Para piorar, eles estão todos
juntos na água e não sabemos qual pode ser o resultado disso", afirma
Marco Grassi.
Já é conhecido, no entanto, o fato de inúmeros desses fármacos e polímeros industriais interferirem em nosso sistema endócrino.
Entre os compostos que mais preocupam os cientistas estão os hormônios,
cuja presença na água pode afetar diretamente o desenvolvimento de
nosso corpo. Pesquisas anteriores já haviam encontrado hormônios como
estrona, progesterona e estradiol na água brasileira. Alguns cientistas
sugerem que o consumo dessas substâncias está ligado à infertilidade
masculina e ao fato de as meninas menstruarem cada vez mais cedo.
Nova legislação — Os métodos para retirar a maioria desses poluidores emergentes da água já existem. Os mais conhecidos são chamados de processos oxidativos avançados,
que usam substâncias químicas como a água oxigenada e o ozônio para
fragmentar esses compostos em pequenas moléculas inorgânicas. No
entanto, para que as estações de tratamento sejam obrigadas a usar esses
métodos, é necessário que esses poluentes emergentes passem a ser
regulados no país.
No Brasil, os critérios de potabilidade da água são estipulados pela
portaria 2.914 do Ministério da Saúde, publicada no ano passado. A
regulação, que é atualizada a cada 5 anos, estabelece diversas normas
que as empresas distribuidoras de água têm de seguir, como padrões de
acidez e radioatividade. Além disso, define quantidades limites de
algumas substâncias, desde bactérias, como os coliformes fecais, até
químicos inorgânicos como o cobre, o chumbo e o mercúrio.
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No início — Na Europa e nos EUA, a discussão está mais avançada. No começo do ano, a Federação Europeia das Associações Nacionais de Serviços de Água e Esgoto passou a regular a quantidade de alguns produtos farmacêuticos na água, como o hormônio etinilestradiol e o antiinflamatório diclofenaco, e defendeu novos estudos para estabelecer os limites de outras substâncias. Nos Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental também deu início a pesquisas para estipular limites legais para esses poluentes. "No Brasil, a discussão ainda está no início", diz Marco Grassi, pesquisador da UFPR.
De fato, o Ministério da Saúde está começando a atentar para a questão
dos poluentes emergentes. Segundo Daniela Buosi, coordenadora-geral de
Vigilância e Saúde Ambiental, no ano passado a pasta lançou editais para
que pesquisadores estudem melhor substâncias que ficaram de fora da
portaria anterior, entre elas alguns poluentes emergentes. "Conforme o
resultado, a portaria pode ser mudada a qualquer momento", diz.
Os pesquisadores do INCTAA também anunciaram que começarão uma segunda
fase do estudo, em que vão analisar a água distribuída em mais capitais.
Com o avanço das pesquisas, pode ser que a água potável de hoje seja
considerada água suja amanhã.
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